Especiais


23a. MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES (2020)

27.01.2020
Por Maria Caú
Leia as resenhas sobre os filmes da mostra 2020

Balanço final da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes

No belo texto do catálogo da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o curador Francis Vogner dos Reis explica a temática da edição (a imaginação como potência) abordando a importância de notarmos que forma e conteúdo são indissociáveis e que o exercício da imaginação como ato político de criação passa não apenas pelos temas abordados, mas pelo aspecto formal do cinema, em sua dimensão de exercício de linguagem. Em tempos tão reacionários, exalta-se assim a experimentação estética em seu potencial político, essa ideia já muito afirmada por todas as vanguardas artísticas, que sempre se esforçaram para estilhaçar a velha forma da arte consolidada (e elitista) em busca do frescor de uma nova forma. Mas o que acontece quando a nova e a velha forma parecem estranhamente intercambiáveis? No universo de conservadorismo galopante em que nos encontramos, quando o cinema nacional é execrado por completo, e cerceado principalmente em suas escolhas temáticas, mais do que propriamente em seus caminhos estéticos, e a partir de alguns exemplos recentes, é interessante pensar se por ventura o que chamamos de experimentação não passa da retomada de uma cartilha muito conhecida de abordagens que serve tão somente para alienar o público mais comum e enfadar aquele já escolado nessas empreitadas, obscurecendo as discussões de um cinema que ainda navega quase exclusivamente pela seara narrativa. Não seria este um ato antipolítico nos dias de hoje?

Essa sensação perpassa alguns dos filmes da seleção da Mostra Aurora, que se fundam em dispositivos formais que se dizem inovadores e mais comumente não o são. São por vezes camadas de verniz acrescentadas em modos de construção estilística ultrapassados ou natimortos, muitas vezes recriando acriticamente experiências que pouco se traduzem para o contexto da atualidade e não dialogam com o Brasil de hoje. Pão e gente, por exemplo, termina por dissolver a questão da exploração capitalista numa tentativa de emular o distanciamento brechtiano (que talvez nem Brecht propusesse mais num contexto em que todos os processos da arte estão expostos como veias abertas para quem quiser ver). Já Natureza morta traveste de invenção um empilhamento confuso e pseudopoético de narrações que soam como perfumaria barata para aclimatar um texto misógino e completamente datado, que permanece inalterado em seu lamentável discurso.

Outras experiências, essas mais bem-sucedidas, também pecam pelo excessivo apreço aos seus procedimentos, deixando de se tornar minimamente propositivas. Embora com alguns momentos de brilho, são filmes que estão por demais preocupados em revelar sua apreciação do dispositivo com o qual trabalham, autorreferentes por cacoete, e que acabam diluindo nesses caminhos sua potência (para usar a palavra mais em voga nesta edição). Sequizágua passa mais tempo transformando a experiência da seca numa viagem observacional de grande poder estético do que elaborando minimamente sobre ela: ao fim, tem-se quase a impressão que aquela vida tão árida é na verdade muito bela (e mal se apreende o contexto de denúncia aparentemente pretendido). Ontem havia coisas estranhas no céu segue pelo mesmo caminho: o desemprego como tema vai se tornando de tal forma secundário que os conflitos perdem qualquer razão de ser e as cenas se tornam progressivamente mais e mais repetitivas porque qualquer identificação com os personagens é cuidadosamente evitada pela necessidade egocêntrica de uma fabulação constante, ininterrupta e nada original sobre o cinema enquanto processo. Mascarados e Canto dos ossos (o vencedor), no caminho oposto, conseguem em alguns momentos afirmar seus projetos, mas acabam se perdendo quando tomam desvios apressados em busca de alinhavar o que era uma outra experiência de espectatorialidade num modelo narrativo clássico, deixando uma aguda sensação de um transplante no qual o cirurgião esqueceu uma tesoura nas entranhas do desprevenido paciente.

Nesse contexto, os filmes mais pulsantes são também talvez os de formato mais “tradicional”, os ótimos Cadê Edson? e Cabeça de nêgo. São também os mais políticos: falam de violência policial, de desobediência civil, denunciam. Cabeça de nêgo foi inclusive realizado a partir do único edital afirmativo para longas-metragens do país. Cadê Edson? é um coquetel molotov atirado contra uma polícia militar que criminaliza os movimentos sociais com o aval do Estado. O fato de terminarem não premiados pode parecer um equívoco em tempos como os nossos, em que é preciso reafirmar o discurso de confronto (talvez até em seu aspecto mais didático), de embate direto com as terríveis manobras de um Estado de contornos fascistas. Mas cabe perguntar até que ponto Tiradentes, essa mostra tão fervilhante que acolhe cineastas iniciantes e seus muitas vezes ousados projetos, não se enamorou de sua própria imagem, tal qual Narciso e alguns dos cineastas do Brasil atual. Talvez esses dois filmes, em disjunção (outra palavra em voga) com a imagem que a mostra tem de si, não possam ser laureados por ela. Mas talvez, apenas talvez, eles apontassem um novo caminho possível no atual estado de coisas. Seja como for, o espaço da mostra permanece um ambiente em que esses questionamentos são não só possíveis como encorajados, e como é maravilhoso trazê-los à tona em um lugar tão fértil. A própria natureza dessa discussão, e o fato de que somos convocados a tomar parte nela, torna Tiradentes um espaço que deve ser preservado e defendido.



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Nossa cobertura se centrará na Mostra Aurora, a principal mostra competitiva de longas-metragens de Tiradentes, que se iniciou no dia 27 de janeiro. Este é sem dúvida um espaço pulsante, já que dedicado a realizadores iniciantes (podem se inscrever apenas aqueles que estão ainda iniciando sua carreira em longas, não sendo diretores consolidados) e que demonstram um desejo explosivo de fazer cinema no Brasil. Essa vontade, que era um sentimento poderoso já nas outras edições da mostra, se faz ainda mais importante no cenário atual, que ameaça até mesmo os diretores mais estabelecidos. Como iniciar um caminho na realização de longas-metragens, esta tarefa hercúlea, num cenário tão inóspito? Os filmes da mostra, sempre plenos de investigações políticas e estéticas, tentam responder a essa pergunta de diversas maneiras. Em atualizações diárias, vamos acompanhar esses caminhos.

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Críticas da Mostra Aurora:



Cabeça de nêgo, de Déo Cardoso

Na última noite de exibição da mostra Aurora, sexta-feira, 31 de janeiro, o diretor Déo Cardoso abriu a sessão de Cabeça de nêgo declarando que seu longa, uma das três obras realizadas a partir do único edital afirmativo para longas-metragens no Brasil, era antes de tudo um trabalho muito sincero. Pois é justamente essa sinceridade que o espectador sente pulsar ao longo dos 85 minutos de projeção. Acompanhamos a trajetória de Saulo (Lucas Limeira), um adolescente que reage com uma pequena violência a um insulto racista em sala de aula e, indignado por ser o único ameaçado com uma possível advertência ou expulsão, enquanto o colega branco fica ileso, decide permanecer nas dependências do colégio. Seu ato de desobediência civil, inspirado nas leituras que vinha fazendo, em especial os textos de Angela Davis e o percurso dos Panteras Negras, impulsiona um movimento coletivo de denúncia contra as condições da escola e os posicionamentos dos seus dirigentes, que se espalha como pólvora pelo corpo estudantil e ganha enorme projeção através das redes sociais.

O primeiro plano do filme, um plano-sequência que começa com Saulo de costas, colando cartazes do movimento político estudantil no qual se insere, já explicita a discussão a que o filme conclama. Em seu uniforme escolar lê-se claramente o lema da escola: “A disciplina é a fonte para o futuro”. Mais adiante, veremos no brasão o ano de fundação do estabelecimento de ensino, que traz o nome de um militar, major Altair Andrade: 1964. Tomando esse conjunto de elementos, o filme questiona: qual o significado da palavra disciplina numa sociedade de opressão? A afirmação do direito de voz do corpo discente, que também passa pelo agudo reconhecimento das perseguições sofridas pelos estudantes negros (e aqui o espaço estudantil é um reflexo duro do ambiente social mais amplo) vai de encontro aos interesses dos dirigentes e, à medida que o conflito se adensa, se expõem as engrenagens de um sistema que tem por objetivo calar. Se a opressão disfarçada de disciplina silencia violentamente, como reencontrar o espaço da voz, coletiva e individualmente? Em mapear alguns desses caminhos (as articulações comunitárias, o conhecimento e a memória, o pensamento estratégico etc.), ainda que didaticamente, se encontra a grande força de uma narrativa bastante emocionante. Nesse contexto, um momento se destaca: uma passagem de tempo que transcorre por meio de um travelling em que deixamos Saulo, lendo sozinho na sala de aula vazia, para retornar a ele, enquanto acompanhamos as mudanças de luz do anoitecer numa parede em que diversas pichações pululam como possibilidades clandestinas de permanência da pluralidade de vozes abafadas.

Há deslizes pontuais, soluços narrativos (o embate direção versus alunos escalona rápido demais), de desenvolvimento de personagem (todos os dirigentes brancos são maquiavélicos, o que leva um filme muito realista para um tom um tanto farsesco em alguns pontos) e em termos de mise-en-scène (as cenas das reuniões da direção são particularmente engessadas). Nenhum deles, no entanto, tira do filme sua capacidade de vibrar a sinceridade com que Déo Cardoso pauta seu fazer artístico. Além disso, a obra cumpre um papel educativo importante, papel que o cinema recusa muitas vezes em prol de um caminho mais sutil ou formalista. Ao citar (literalmente projetar no corpo do personagem central) figuras caras para o movimento negro, como Malcolm X, Martin Luther King, Carolina Maria de Jesus e Nelson Mandela, e falando aos jovens, e aos jovens negros, o filme constrói um arcabouço de referências para embasar o processo de transformação social que ele retrata e no qual (ao que parece) deseja se inserir. Ao fim, quando as cenas de violência contra os estudantes se mesclam a cenas documentais de manifestações populares reprimidas pela polícia, essa ligação ganha contornos ainda mais destacados. No plano final, o protagonista encara o espectador num espaço indefinido (estaria na escola? preso? morto?) e, pleno da voz que reivindicara para si, parece perguntar em silêncio: o que afinal quer dizer disciplina?



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Natureza morta, de Clarissa Ramalho

Adaptação do romance A carne, de Júlio Ribeiro, a trama se passa em fins do século XIX e se centra nas vivências de Lenita, uma jovem que a princípio rejeita o casamento como convenção social, mas acaba por se apaixonar por um homem desquitado e a desejar uma vida em comum com ele, um tabu enorme para a época. O longa-metragem seria o título final de uma trilogia, da qual fazem parte Djalioh (2011) e Paixão e virtude (2014), esses dois últimos baseados na obra de Flaubert e dirigidos por Ricardo Miranda, companheiro de Clarissa Ramalho, que assina a vacilante direção deste Natureza morta. O problema central do mais recente projeto é a absoluta falta de coesão da sua proposta, que deseja seguir por dois caminhos contraditórios: a adesão irrefletida à temática do romance, uma história inteiramente datada e bastante misógina, que investiga a histeria feminina, essa condição clínica historicamente imputada às mulheres que não se adequavam às normas da sociedade patriarcal extremamente opressora desse período, mal camuflada por uma tentativa de atualização do ponto de vista puramente estético. Se separadamente esses caminhos talvez já se mostrassem desastrosos, uni-los torna a narrativa uma experiência bastante bizarra, com o espectador se vendo presa de um formato pseudoinovador que esconde um discurso reacionário colocado sem qualquer ironia ou reflexão.

É importante pontuar que as pretensas inovações de linguagem não passam de um empilhamento de modos de narração que confunde mais do que interessa: o filme tem três narradoras que geralmente discursam em quebra de quarta parte (duas das quais personagens colaterais e uma delas, interpretada por Helena Ignez, uma personalidade de ares diáfanos que aparece e some de maneira igualmente constrangedora), somadas a outros trechos de narração extradiegética ou de ares teatrais, com os personagens revelando suas intenções ou explicitando os caminhos da trama. Essa confusão é ampliada pelas escolhas cênicas bipolares – da mise-en-scène engessadíssima partimos para trechos de contornos performáticos que mais parecem experimentações de videoarte dos anos 1990 (num deles, particularmente infeliz, dois pares de mãos femininas alvejam a camisola de Lenita com punhados de sangue, no que parece uma paupérrima e óbvia alusão à chegada da sua primeira menstruação e ao seu “amadurecimento enquanto mulher”). Outro aspecto problemático é a escolha de arte, figurinos e caracterização por um viés não realista, em que alguns elementos contemporâneos (uma caneta esferográfica, uma bota com fecho moderno, as tatuagens dos atores) surgem pontualmente, mal integrados ao todo.

Muito pior é a não problematização do texto original, e sua declamação cadenciada por sobre sequências supostamente poéticas que descolam rítmica e visualmente o discurso de seu sentido. Num dos momentos mais graves, uma leve sonolência toma conta do espectador, que assiste à imagem de Lenita num tonel de guarda de uvas, pisoteando-as eroticamente, depois esfregando-as no seu corpo, numa passagem com algum valor imagético, apesar de ligeiramente constrangedora. Nesse ponto, nubla-se o sentido do enunciado, vocalizado de forma empoladíssima e pedante por sobre as imagens, e que romanticamente descreve uma situação de violência, quiçá um estupro. A heroína diz “Não, assim eu não quero” e o homem se impõe sobre ela, mas a cena é descrita como um encontro voluptuoso, como a culminação de um desejo mútuo. Aliás, em diversas outras passagens trechos do texto arranham os ouvidos de espectador, apesar da forma pretensamente poética com que são ditos: compara-se Lenita a uma cabra, fala-se de cio e da “necessidade orgânica (ou fisiológica) do macho” sem nenhum traço de sarcasmo ou problematização. Ao mesmo tempo, escolhe-se representar o desejo de Lenita sob o viés da mistificação. Enquanto ela tem febres e morde travesseiros, o mocinho pode (sendo homem) masturbar-se.

Com um filme de ótica tão anacrônica disfarçada num invólucro de experimentalismos tão velhos, vazios e repetitivos quanto seu tema, a mostra Aurora certamente terminou a noite de sexta num grande anticlímax.



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Pão e gente
, de Renan Rovida

A mostra Aurora tem os seguintes balizadores: longas-metragens de realizadores que estejam no máximo no terceiro filme no formato e obras que tragam em seu bojo alguma proposta estético-narrativa de contornos inovadores e/ou experimentais. Infelizmente, algumas vezes nos deparamos aqui com filmes que confundem investigações de linguagem com exibições de narcisismo. Este é o caso de Pão e gente, de Renan Rovida, um título que escolhe reiteradamente se esconder atrás de uma suposta interpretação cinematográfica do distanciamento brechtiano não para criar uma dialética, mas para dissolver qualquer possibilidade de crítica social numa experiência estética tão vazia quanto absolutamente pretensiosa. Baseando-se em A padaria, texto de Brecht escrito ao fim dos anos 1920, a narrativa trata das relações humanas de um grupo de indivíduos que luta para conseguir o sustento, imbricado na rede de explorações própria do capitalismo em seu viés mais selvagem. Digo trata, mas o mais correto seria dizer trataria, uma vez que as escolhas do roteiro e da direção esvaziam o texto de qualquer potência, indo em direção a um exercício estanque, que navega mal entre elementos teatrais e fílmicos e agoniza por sessenta minutos que mais parecem três horas inteiras.

O filme é inteiramente pontuado por interlúdios musicais com canções que servem apenas para alongar a duração e sublinhar textualmente informações que o espectador já tem: num momento particularmente deslocado, um lavador de pratos canta sobre a opressão de sua condição. Esse recurso talvez funcionasse em dado contexto teatral, mas é absolutamente excruciante no cinema. As atuações, claramente não pautadas no realismo, não se mostram alinhadas em qualquer outra chave: se o dono da padaria parece estar atuando numa perspectiva farsesca, a funcionária que ele despede reage como se num melodrama, e assim a impressão é de caos cênico. Como se não bastante, num dado ponto o diretor resolve interromper a ação para se colocar, enquanto uma das atrizes quebra a quarta parede para debater com ele o texto, num claro vício dos tempos atuais. Cabe pensar até que ponto esse tipo de ruptura deixou, ao menos no contexto de Tiradentes, de ser uma proposição ousada para cair num vício de linguagem repetido irrefletidamente. A opção pelo preto e branco numa fotografia mal trabalhada parece seguir o mesmo caminho: a tentativa de criar uma roupagem artística para a empreitada. Além disso, a trama é pontuada por um grupo formado pelos próprios atores, despidos de seus papéis principais, que funciona como uma espécie de coro, numa ideia não inteiramente desprovida de mérito, mas pobremente executada. O desenho de som é outro problema: falas, ruídos e música se embolam sem qualquer cuidado.

Pior: o filme decide fazer algumas alusões ao contexto nacional após ter cuidadosamente se afastado de qualquer discurso político em busca de uma viagem narcisista pela “grande arte”, seja lá o que isso for. E quando o faz, principalmente quando decide encerrar a narrativa com imagens reais de trabalhadores que olham diretamente para a câmera, belamente iluminados, ele recai na estetização oca da imagem do pobre – o lindo, digno pobre, essa exótica gente (para retomar o título) que nós, artistas, podemos observar distanciadamente através das lentes de nomes talentosos como Sebastião Salgado. Mas que excluímos inteiramente do nosso fazer artístico, convertendo-a em uma silhueta preto e branca num teatro bambo que fala apenas conosco e com os nossos pares.



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Mascarados, de Marcela e Henrique Borela

Numa pedreira de Pirenópolis, trabalham homens de diferentes trajetórias pregressas, aguardando uma possibilidade de fuga deste ambiente penoso. Ansiosos por pequenos e efêmeros intervalos de liberdade concedida, eles aguardam a Festa do Divino Espírito Santo, em que se juntam a outros e saem mascarados para a euforia com duração pré-determinada. Pois em tempos de softwares de reconhecimento facial e do controle ubíquo dos indivíduos, até essa alegria parece comprometida por um Estado que não preza pela proteção das tradições religiosas, ou até mesmo pelo direito ao lazer e ao descanso.

A fotografia, assinada por Wilssa Esser, que trabalhou no excepcional Temporada, de André Novais Oliveira, é um ponto alto, em especial nos planos da pedreira, em que as explosões pontuam a tragédia humana dos personagens encarcerados naquela exploração. Mas o elemento formal melhor trabalhado é sem dúvida o desenho de som, um trabalho brilhante de Guile Martins, que funde esses homens com o ambiente áspero em que eles circulam, mesclando os estrondos às incessantes picaretas, à trovoada que se aproxima vaticinando, ao barulho da ansiedade de uma respiração. Sem esse ambiente sonoro, o filme, que sofre com problemas narrativos após um começo bastante forte, não seria capaz de manter a imersão do espectador.

O desfecho, apesar do belíssimo plano final, é insatisfatório porque incapaz de alinhavar a série de elementos soltos que o filme esboçara. Tem-se a impressão de um arremate apressado e por demais preso a uma estrutura clássico-narrativa a qual o longa não parecia se filiar até então.



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Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina

A luta de movimentos sociais por moradia no Distrito Federal: eis o tema do longa de Dácia Ibiapina. Tendo como personagem-guia Edson Francisco da Silva, uma das lideranças primeiro do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e, posteriormente, fundador do MRP (Movimento de Resistência Popular), o documentário guarda diversas semelhanças com Parque Oeste, de Fabiana Assis, vencedor da mostra Olhos Livres do ano passado. Ambos os filmes retratam ocupações e debatem o direito à moradia e a arbitrariedade das ações policiais que protegem violentissimamente a propriedade privada ou defendem os moradores mais abastados no seu desejo de não conviver com os miseráveis. Se no filme de Assis vemos Goiânia, aqui temos o Distrito Federal, um lugar em que essas questões se colocam de forma ainda mais rascante: coração do Estado brasileiro, o Plano Piloto de Brasília é a um só tempo um símbolo importante do desenho urbano nacional e um ambiente que historicamente expeliu à força aqueles que o construíram nas piores condições de trabalho possíveis. Cadê Edson? tem a potência de lidar com essas contradições e falar sobre um dos cenários mais desiguais do país de forma humana e praticando a escuta. Edson, que uma das entrevistadas descreve como “bruto como todos nós, trabalhadores, que têm que deixar a casca e coro duros para sobreviver”, é um homem com pouca escolaridade, mas extremamente lúcido. A diretora explora essa lucidez para enfocá-lo recorrentemente como ponto de inflexão deste grupo e eventualmente afastar-se dele em direção a outras histórias, passando por algumas ocupações em um período bastante amplo de tempo.

Nesses afluentes narrativos surgem relatos tão comoventes quanto surpreendentes, que se chocam com os preconceitos velados dos espectadores. Em uma dessas passagens, vemos um casal que permanece doce e esperançoso, quiçá ingênuo, em meio à completa escassez. Se ele diz amorosamente: “Conheci ela quando ela estava grávida de seis meses do meu primeiro filho”, ela revela a ansiedade pelo nascimento do quarto bebê, que pretende batizar como Vitória MTST, se dizendo feliz com a perspectiva de dar à luz no espaço da ocupação. Em outro momento, Adílio, outro membro do movimento, expõe sua tristeza com o fato de que a polícia destruíra seus cadernos de aula (em especial suas anotações sobre sua matéria favorita, Filosofia) e suas poesias, para só depois lembrar que eles também rasgaram seus documentos, para ele menos importantes hierarquicamente que sua poesia. “Para mim que sou preto não tem serventia a polícia”, pondera com grande poder de síntese.

Embora o filme se construa de maneira bastante convencional, começando com um episódio de prisão arbitrária para retomá-lo ao fim, e sendo pontuado por entrevistas bastante expositivas, essa escolha não dilui o poder do discurso e a força de imagens como uma impressionante sequência filmada por drones. No alto do prédio ocupado, o Torre Palace, dois ou três homens tentam travar uma luta já perdida contra dois helicópteros apinhados de policiais armados com bombas e balas de borracha. O grande plano geral mostra o ambiente no entorno, um bairro central de Brasília com arranha-céus “respeitáveis” e rodovias movimentadas, no meio do qual essas silhuetas recortadas contra as nuvens, enfumaçadas por uma fogueira, parecem seres retirados de um futuro pós-apocalíptico que, apesar de existir, permanece ignorado por aqueles que se avizinham.



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Canto dos ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros

Como resumir a trama, bastante solta e vacilante, de Canto dos ossos? Mais simples talvez seja enumerar os elementos através dos quais o longa de terror articula a história de dois monstros ao longo de diversas épocas e lugares. Esses monstros seriam talvez mais bem nomeados como vampiros, uma vez que são criaturas pós-humanas que morrem e renascem com uma sede de sangue (e longas unhas, aparentemente retráteis como os caninos de outrora). São, fato curioso, vampiros inteiramente integrados à lógica contemporânea: uma professora de Literatura às voltas com a direção de ares fascistas do colégio em que leciona, um atendente de farmácia do interior do Ceará. Esses monstros itinerantes, que se comunicam por Whatsapp e se preocupam com o que postar nas redes sociais, perambulam como flâneurs modernos (e não seria o vampiro sempre uma espécie de flâneur?), numa narrativa que, se começa forte, resulta confusa e rocambolesca.

O encadeamento caótico de tramas e subtramas é mal ancorado na narração, que remete à literatura ultrarromântica de fins de 1800, o Mal do Século, com momentos mais e menos inspirados, terminando redundante e repetitiva, num ritmo sonolento da fala que se esforça demasiadamente para alcançar uma certa “poética do horror”. O próprio título segue na direção da construção do poético: o canto não apenas como o local em que duas linhas se entrecruzam, uma quina, um recanto afastado de mundo em que vivem esses monstros, ou em sua acepção musical, mas como um trecho de um poema maior e mais amplo. Infelizmente, nesse caminho assumidamente episódico, o longa dissolve a potência de seus primeiros trinta minutos, inclusive abandonando personagens maravilhosos, como Nicole, a estudante de Ensino Médio com pretensões de escritora maldita.

Ainda assim, o filme mantém o interesse muito por conta da direção de fotografia, assinada por um conjunto de seis pessoas, que se mostra capaz de fazer de Búzios, uma cidade alegre e solar, um local inóspito, frio, rochoso, coberto de uma neblina semipermanente e encarcerado por um oceano sempre cinzento e ameaçador. Alguns planos são particularmente felizes, sejam de caráter mais jocoso/irônico (como o ponto de vista de um monstro de óculos vermelhos brilhantes), ou elaborados de maneira mais formal e detida, como o momento em que Naiana, a monstra-professora de literatura, ressurge em meios às rochas da praia. Os elementos de gore são outro ponto alto, com maquiagem e fotografia trabalhando juntas de forma bastante satisfatória, à exceção de quando surgem as “múmias”. Sim, o filme também tem múmias. Parece confuso? O é.

Menos bem-sucedida é a direção de atores, sendo progressivamente comprometida por um roteiro que se esforça mais para alimentar um caldeirão de referências do que para estruturar minimamente a narrativa ou desenvolver personagens, que passam a flutuar numa progressão acelerada de episódios cada vez menos interessantes a não ser, aqui e ali, em sua feição puramente estética.

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Ontem havia coisas estranhas no céu, de Brunos Risas

Tamanhas são as semelhanças entre o longa de Bruno Risas e Vermelha, de Getúlio Ribeiro, vencedor da Aurora na edição passada da mostra, que é justo questionar se Tiradentes não estaria consolidando um formato particular de narrativa: o filme-ensaio íntimo, híbrido entre ficção e documentário, enfocando a família e a memória do próprio realizador, e que desemboca por fim em elementos sobrenaturais de um cinema de gênero (em Vermelha, o pai morre e retorna em espírito, neste a mãe é abduzida por uma nave espacial). Em realidade, o entre-lugar ficção/documentário e o filme-ensaio com ares de diário íntimo parecem ser os traços mais recorrentes nas duas últimas seleções competitivas de Tiradentes, com variados graus de sucesso (na Foco, competitiva de curtas, Cinema contemporâneo, de Felipe André Silva, é mais bem-sucedido ao abordar essa recorrência de maneira irônica e criar com ela um jogo narrativo interessante nos seus céleres cinco minutos). No espaço da Aurora, em especial, sente-se às vezes a dolorosa falta de uma proposta fresca que se apoie num formato mais tradicional até para eventualmente transbordá-lo.

O longa de Risas constrói uma mínima coerência dramática, apoiada principalmente na figura da mãe, que interpela a câmera diversas vezes, em momentos espontâneos ou claramente encenados, falando da dureza de seu cotidiano repetitivo de dona de casa que precisou abrir mão de seus sonhos. O momento mais forte é uma altercação (real? roteirizada?) entre a personagem e o filho diretor, em que ela questiona a condução do filme e o tratamento que ele lhe está dispensando: nessa elaboração sobre o processo, intermediada pela protagonista, está o único trunfo de um filme bastante exangue. O excesso de tempos mortos absolutamente entediantes também não colabora, assim como alguns planos-sequência tremidos e vacilantes (uma passagem no interior do carro que atravessa o bairro em que mora a família é particularmente ruim), que parecem não ter sentido narrativo além de tentarem estetizar o mal filmado sob as vestes do realismo estilo registro de celular. Também não formam um conjunto minimamente coeso com os planos mais elaborados da fotógrafa Flora Dias, interessantes em especial quando se voltam para o olhar da personagem central.

A instigante narração inicial é de pronto abandonada apenas para ser retomada na meia hora final. De forma semelhante, todas as propostas (e o filme apresenta algumas) são abandonadas sem qualquer justificativa: tudo parece abortado ou mal costurado, gratuito e um tanto narcisista. A própria temática da nave espacial, que surge como única possibilidade de fuga de um ambiente opressor para se revelar uma fuga falsa (“Lá e aqui é tudo igual”, diz a mãe ao fim), não tem a força narrativa que poderia ter caso o filme já não tivesse guiado o espectador às cegas por uma longuíssima quase hora e meia de um caminho tortuoso. Caminho ao longo do qual o realizador parece não saber aonde quer chegar e não se interessar em fazer da viagem uma experiência sequer estimulante.

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Sequizágua, de Maurício Rezende

O filme que abriu a Mostra Aurora de 2020 passeia entre o documentário observacional e alguns fiapos soltos de ficção para retratar um assentamento agroextrativista de Minas Gerais que sofre com a falta de chuvas e, consequentemente, com a interrupção da produção que dava ao povo da localidade meios de sobrevivência. Se a proposta parece interessante, ela encontra uma realização tão sonolenta quanto vacilante, legada a planos extremamente repetitivos, malgrado belos (se sucedem as imagens de pessoas que caminham ou pilotam uma moto em meio à carestia do sertão), e signos utilizados à exaustão: o fogo, o solo quente, a solidão (esses três elementos se unem e são reiterados perpetuamente). A ideia central do fraco roteiro de Affonso Uchôa (diretor de Arábia) parece ser mostrar a estiagem como um interlúdio da vida daquela comunidade, que permanece interrompida, num triste estado de suspensão, enquanto a chuva não vem. A repetição constante e o privilégio dado à estetização desse universo, no entanto, esvaziam a proposta não apenas de qualquer feição mais genuína, mas do caráter político apontado no início da narrativa, que começa com o depoimento de um agricultor local, que culpa as plantações de eucalipto e as grandes corporações pelas terríveis transformações que precipitaram aquele ambiente rural ao colapso. Ao fim, quando uma leve chuva surge como possibilidade de catarse coletiva apenas para ser incapaz de produzir transformação, o filme se eleva um tanto, ajudado pelos dramas humanos dos personagens que ele até então havia tão mal explorado.





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