Uma mulher e um homem sentam-se, lado a lado, em um sofá. O plano médio os captura de costas e, entre uma nuca e outra, centraliza o aparelho televisor. Nele refletidas, as imagens caseiras prevalecem sobre as cinematográficas. É “a coisa mais bonita que eu já filmei”, anunciara a voz masculina. Está em quadro um cenário outunal: folhas caídas sobre uma acinzentada calçada, encerrada por uma parede de tijolos vermelhos. O vento sopra uma sacola plástica, e a câmera amadora a acompanha. Não há trilha diegética; o tema emerge antes como um leitmotiv da obra maior, hollywoodiana, do que como pontuação específica desse “filme dentro do filme”. A descrição remete a um certo “experimentalismo digital”: poderia mesmo fazer parte de Cinco (Five, 2003), coletânea de curtas-metragens de Abbas Kiarostami, não fosse o abismo estético e orçamentário entre as duas produções. Trata-se, na verdade, de Beleza Americana (American Beauty, 1999), longa que consagrou a Sam Mendes seu primeiro - e, até o momento deste texto, único - Oscar.
Por trás da “herética” aproximação entre Mendes e Kiarostami, o pertencimento a um único regime artístico autoriza inusitado paralelo. Cinco, vale lembrar, subtitula-se Dedicado a Ozu (Dedicated to Ozu): uma homenagem, portanto, ao mestre do cinema japonês Yasujiro Ozu, falecido sem ao menos vislumbrar a mera possibilidade do digital. O próprio título, conclui-se, coloca em jogo uma dialética entre continuidade e ruptura. Se, por um lado, a novidade das câmeras digitais implica um novo olhar, por outro, algo persevera desde Era uma vez em Tóquio (Tôkyô monogatari, 1953). Nesse sentido, duas respostas se apresentam. A mais interessante remonta a um momento ainda anterior. Em fidelidade ao acontecimento literário do romance realista, o cinema de Ozu apaga a hierarquia representativa entre temas mais ou menos nobres. Emancipar-se da representação, nos lembra Jacques Rancière, não significa se desfazer da semelhança; importa, antes, desobrigá-la triplamente: da dependência do visível em relação à palavra, da progressividade da revelação e, por fim, da distância entre o “gozo suspensivo da ficção” e o “prazer atual do reconhecimento”1. Desde a literatura oitocentista, tal procedimento permitiu a entrada em terreno artístico de imagens banais como as de uma sacola plástica - no caso de Beleza Americana - e de um tronco - como no primeiro episódio de Cinco -, tal qual das imagens ozunianas de famílias japonesas.
A segunda resposta, por sua vez, entende a homenagem de Kiarostami apenas pela técnica compartilhada do longo plano. No momento em que Sam Mendes lança 1917, um falseado plano-sequência de duas horas, um novo argumento se estabelece. Em 1999, afinal, o então jovem cineasta demonstrava alinhar-se à primeira postura. Ao descrever a vida do subúrbio estadunidense, Beleza Americana parecia capturar com o mesmo cuidado a rotina de jardinagem da personagem de Annette Bening e o esvaziado (pois antecipado pela narração) “clímax” do protagonista Kevin Spacey - opção metaforizada pela sacola plástica. Duas décadas depois, talvez tomado pelo conservadorismo, Mendes resgata o regime representativo das artes. Ao justificar a opção do diretor pelo plano-sequência, o fotógrafo Roger Deakins revela: “ele queria para que o público pudesse se conectar emocionalmente com os personagens principais e sempre ficar ao seu lado”2. Ou seja, a hierarquia entre mocinhos e vilões retorna à cena, bem como a submissão das imagens - a continuidade do plano - ao enredo - o incessável da guerra -, sempre a serviço de uma progressiva jornada. O deslumbramento do artifício, por último, fornece ao espectador a distância segura entre a realidade da guerra - ou a identificação com as personagens - e a irrealidade da ficção - tudo não passa de um grande "jogo".
Longe de recriminarmos a técnica, questionamos, de outro modo, tão somente o seu uso condicionado por um exercício mimético em busca da catarse. Ao fim, podemos nos perguntar - visando enriquecer o debate, em vez de encerrá-lo: o que Sam Mendes de 1999 teria a ensinar ao Sam Mendes de 1917? Talvez que o cinema, para além de seu caráter industrial, deva retornar à simplicidade de uma sacola plástica. Quiçá um filme sobre a Primeira Guerra não se construa com as suntuosas imagens de Roger Deakins ou com a frenética trilha musical de Thomas Newman. Um cinema em que não haja “nada de novo”, como sugere o romance de Erich Maria Remarque adaptado por Lewis Milestone (All Quiet on the Western Front, 1930), e que, no entanto, forje novas relações entre o dizível e o visível, entre o visível e o invisível, entre o dito e o interdito: provavelmente às vésperas de seu segundo Oscar, Sam Mendes porventura tenha esquecido por que conquistou merecida admiração.
1 Rancière, J. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 126.
2 Disponível em: <https://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/para-sam-mendes-1917-e-um-de-seus-filmes-mais-pessoais/>. Acesso em 30 de janeiro de 2020.