O universo dos quadrinhos, que já foi explorado pelo cinema ousada e fantasiosamente em filmes como Sin City(de Robert Rodriguez e Frank Miller) e até mesmo "realisticamente" em Corpo Fechado(de M. Night Shyamalan), é homenageado com um filme visualmente impecável, muito bem coreografado, rico em efeitos especiais bem utilizados, e que evoca a mitologia do herói(que é a base do nascimento da cultura HQ) de forma singular. Joseph Campbell, autor de O Poder do Mito, livro que entre outras coisas analisa a mitologia do herói no cinema, através de Star Wars, certamente bateria palmas para a obra se estivesse vivo.
300, de Zack Snyder (que foi criado a base de HQ e parece não ter "crescido"), é o filme definitivo em matéria de diversão conjugada a mitologia heróica, uma "história real" com todas as cores e movimentos, mas principalmente com a diversão que só o cinema pode oferecer. Cenários majestosos, batalhas verossímeis, atores bem escolhidos e comprometidos com seus papéis(inclusive fisicamente, pois muitos tiveram que aperfeiçoar seu corpo para estar no filme à base de muita musculação), entre outros detalhes, fazem com que 300 possa provocar reações de amor ou ódio por onde for, mas nunca passe desapercebido, sem causar impacto no coração ou no estômago de quem o assiste.
Leônidas, o rei de Esparta, vivido por um Gerard Butler que encarnou muito bem o espírito guerreiro, agressivo e forte que o filme demanda, parte pra um lugar distante, enfrenta provações, prova a glória, sofre a queda e emerge na redenção, no seu nome gravado na eternidade de monumentos que existem no mundo real. É o herói perfeito, de um filme essencialmente masculino(embora muitos possam, por questões subjetivas, ver símbolos gays nas entrelinhas), que vem lembrar, ao mundo de homens em crise adaptativa ao universo feminino pós-guerra fria feminismo x machismo, que não há nada de errado em símbolos ortodoxos da masculinidade.
Butler nos lembra do cara que berra palavrões na arquibancada do estádio pelo seu time, que intervêm quando algum babaca espanca uma funcionária de companhia área que nada tem a ver com controle de tráfego, que não aceita se ajoelhar para um mundo cada vez mais pateticamente politicamente correto, medroso e acomodado. É a essência do macho, do guerreiro, sem ser machista(as mulheres Espartanas são em várias oportunidades enaltecidas), pois o foco da sua luta está em proteger sua terra, seu povo e principalmente sua mulher, seu amor, como o filme deixa claro em sua conclusão.
Rodrigo Santoro, aparece como o mimado Xerxes, uma criança grande sedenta de poder que vive numa realidade distorcida em que se auto proclama Deus. O ator vive perfeitamente o papel, apesar da sua voz desnecessariamente modificada por computador. Suas expressões de ira, dor, surpresa e arrogância não poderiam ser melhor construídas. O papel deve definitiva e merecidamente escancarar as portas de Hollywood para o talentoso brasileiro que viveu como ninguém seria capaz o rei que mandou açoitar o mar por afundar seus navios.
Zack Snyder e sua equipe técnica foram brilhantes ao mostrar de maneira visualmente impecável na tela vilões animalescos, animais utilizados na guerra, e guerreiros persas vestidos como seres mitológicos indestrutíveis enfrentando homens comuns, cuja maior virtude é ter se preparado por toda a vida para nunca se render, nunca recuar. A beleza visual do filme no entanto não pára na batalha, mas avança nas cenas das paisagens de Esparta, ou na ótima e sutil cena de sexo entre Leônidas e sua rainha, antes dele partir para uma batalha de onde sabia que não iria retornar.
É um filme, aliás, contundente em todas as cenas, a ponto de causar rebuliço religioso no "mundo real", uma vez que se prestarmos atenção aos signos do filme, veremos ali o sacrifício de Cristo, o repúdio às restrições impostas às mulheres em algumas culturas, e uma certa incitação da eterna tensão entre ocidente e oriente. Para quem só queria divertir, Zack Snyder acabou indo bem longe.
300 pode causar estranheza, se pensarmos em enquadrar a sociedade Espartana(que existiu numa época em que nada garantia o dia de amanhã além da espada) e seus preconceitos e condutas leoninas a um mundo onde felizmente existe ONU, UNICEF, Greenpeace, Anistia Internacional e por aí vai, mas, por outro lado, o filme tira a poeira de cima de valores como lealdade, integridade, fidelidade, honra e sacrifício por um ideal. O filme nos lembra o sabor de se recusar a ajoelhar, mesmo que isso signifique perder tudo que temos.
Talvez o que leve tantas pessoas a entrar e sair entusiasmadas do cinema por 300, não seja só a identificação com o arquétipo do herói, do guerreiro, mas a sensação de que faltam Leônidas e sobram Xerxes e escravos no mundo real. Talvez o mundo precise urgentemente de homens guerreiros e menos de "deuses" afetados e arrogantes, que não admitem nada que os contraponha e vivem do louvor de seus escravos manipulados pelo medo. Este pode ser o segredo de 300...divertir, mas penetrar fundo na mente, como uma lança.
ALVARO FERREIRA é Desenvolvedor Web
Leia a crítica de MARCELO JANOT para 300