Artigos


OLHARES QUE MINIMIZAM O NAZISMO

21.02.2020
Por Daniel Schenker
Há uma tendência de suavizar o lugar do nazismo na história?

Numa época como a de hoje, marcada por contundentes manifestações contra toda forma de exclusão e violência – atitude fundamental, ainda que atravessada por eventuais excessos da patrulha do politicamente correto –, a prática do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial vem sendo cada vez mais minimizada, como se pode perceber em diversas obras.

Em Jojo Rabbit, filme de Taika Waititi vencedor do Oscar na categoria roteiro adaptado (é baseado no livro O Céu que nos Oprime, de Christine Leunens), o menino Jojo (Roman Griffin Davis) tem em Adolf Hitler o seu herói imaginário. Esse ponto de partida causou estranhamento, mas o problema central não está na caracterização fantasiosa de Hitler, papel de Waititi. Até porque não é a primeira vez que o público se depara com a inserção do holocausto dentro de uma estrutura farsesca, que torna tudo bem mais leve que os acontecimentos históricos.

Basta lembrar de A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni, que, logo no início, se anuncia como fábula, como que pedindo a autorização da plateia para se distanciar da fidelidade ao real na abordagem do contexto do holocausto, proposta especialmente evidente na segunda metade, quando Guido, o protagonista a cargo de Benigni, percorre o campo de concentração ao lado do filho Giosué (Giorgio Cantarini) e faz uma declaração de amor para a esposa, Dora (Nicoletta Braschi), no autofalante.

Em Bastados Inglórios (2209), Quentin Tarantino, apesar da localização concreta (a França ocupada pelos nazistas, em 1941), inicia com “Era uma vez...”, tradicional expressão de abertura das fábulas que afirma uma suspensão do real. Mesmo assim, há algo a assinalar acerca do modo como judeus e nazistas são retratados no filme.

No primeiro capítulo, o espectador acompanha a tensa visita do caçador de judeus Landa (Christoph Waltz) à casa do fazendeiro LaPadite (Denis Ménochet), que esconde a família Dreyfuss, judia. A sequência termina com os oficiais comandados por Landa metralhando os integrantes da família, com exceção de Shosanna (Mélanie Laurent), que consegue fugir. O segundo capítulo apresenta os bastardos do título, um grupo composto por oito soldados judeus capitaneados por Aldo Raine (Brad Pitt), que matam nazistas com requintes de crueldade. Por um lado, os judeus estão reagindo ao massacre nazista; por outro, o filme sugere uma certa equivalência entre os dois grupos – com o agravante de os soldados judeus agirem de forma bem mais brutal que os nazistas.

Jojo Rabbit também se filia à trilha da vertente não-realista. Mas, à medida que a projeção avança, o filme se afasta um pouco da fábula e investe na carga dramática do rito de passagem e da tragédia da guerra. Há o cuidado de desconstruir a simpática visão imaginária de Jojo em relação a Hitler, a julgar pela maneira como o menino se liberta de sua influência.

A questão está em outro lugar: na concepção da personagem da mãe de Jojo, Rosie (Scarlett Johansson), uma mulher que luta contra o regime nazista, tanto militando nas ruas quanto abrigando uma moça judia, Elsa (Thomasin McKenzie). Rosie, porém, não tem densidade. Não se mostra absolutamente incomodada com o fato de o filho se comportar como um aprendiz de nazista.

A despreocupação de Rosie poderia ser entendida como alienação – mas, ao contrário, suas ações expressam engajamento. Uma outra justificativa para a ausência de atitude dela estaria no medo de ser denunciada pelo próprio filho, risco realçado por Bertolt Brecht na peça Terror e Miséria no Terceiro Reich. Contudo, a personagem, desprovida de qualquer peso dramático, não demonstra inquietação diante desse perigo.

A falta de consistência de Rosie abre para o espectador uma chave de uma leitura preconceituosa – a da percepção da personagem como uma mãe democrática, que respeita as diferenças a ponto de conviver pacificamente com as inclinações nazistas do filho. Talvez caiba perguntar se esse respeito seria louvado se Jojo, ao invés de envolvido com a adoração a Hitler, estivesse comprometido com outros planejamentos nefastos, como o extermínio de negros ou LGBTs. Possivelmente, Jojo Rabbit estaria gerando mais polêmica.

Encenação do grupo EQuemÉgosta? dirigida por Tarina Quelho e apresentada no Sesc Copacabana, Isto é um Negro? propõe uma comparação entre segregações perpetuadas ao longo da história. O espetáculo aborda, com energia catártica, a continuidade da discriminação sofrida pelos negros. A dramaturgia, assinada pela própria Quelho e pela atriz Mirella Façanha, sinaliza uma espécie de paradoxo: explica a separação histórica entre brancos e negros como estratégia para dominar, mas frisa a importância, nesse momento, de ressaltar a separação para denunciar a barbárie e o rebaixamento ao qual o negro segue relegado nos dias de hoje.

Num dado instante, a atriz Ivy Souza menciona Hitler como figura terrível, mas sugere que o extermínio que comandou é uma tragédia do homem branco – sinônimo de privilegiado. A atriz simula uma situação de censura, como se estivesse sendo pressionada a alterar o seu depoimento particularmente quando cita a atrocidade nazista, e, diante dessa circunstância, torna sua fala ainda mais incisiva.

Mas a justa determinação em chamar atenção para a exclusão que fere implacavelmente um coletivo e em exigir um tratamento igualitário ou compensador não deveria implicar na relativização do sofrimento também lancinante vivenciado por outro grupo. Surpreende que o título da encenação evoque É Isto um Homem?, livro em que Primo Levi traz à tona sua experiência em campo de concentração.

Tanto trabalhos que assumem identidade na contramão da reprodução do real quanto aquele que, ao contrário, confronta o espectador com um choque de realidade revelam uma tendência a suavizar o lugar do nazismo na história. A problemática transcende as obras analisadas e não se refere “apenas” ao passado. Não são poucas as vozes que apontam para um crescimento do antissemitismo no mundo de hoje.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário