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A PROPÓSITO DE NADA?

27.04.2020
Por Alberto Flaksman
Autobiografia de Woody Allen é altamente recomendável para os fãs e esclarecedora sobre a relação conturbada com Mia Farrow.

O comentário autodepreciativo, uma das principais características do humor judaico de Woody Allen, o seu mais célebre representante no cinema contemporâneo, já se faz presente no título de sua autobiografia: “A Propos of Nothing” (em tradução livre, “A Propósito de Nada”, ou “Escrevendo sobre o Nada” – a tradução brasileira ainda não foi publicada). O nada, no caso, não é o “néant”, o abismo existencial do filósofo Jean-Paul Sartre, e sim a importância que Woody Allen atribui, em tese, à sua própria vida e obra. Trata-se de um exagero, evidentemente. Uma brincadeira que, se não fosse feita por ele mesmo, poderia ser considerada altamente ofensiva. Afinal, esse cineasta ultrapremiado e admirado no mundo todo deixa, até agora, um legado de quase 50 filmes que escreveu; ou escreveu e dirigiu; ou escreveu, dirigiu e nos quais atuou. Um caso único na história do cinema.

Woody Allen é um fenômeno de criatividade e produtividade. Mas ele nos vende em sua autobiografia a imagem de um sujeito descuidado e pouco afeito ao trabalho. Um profissional que escreve seus roteiros à mão deitado em sua cama, escolhe seu elenco com base em impressão superficial, não tem paciência para ensaiar, chega no set de filmagem sem saber onde vai colocar a câmera, deixa os atores livres para mudar à vontade os diálogos que ele mesmo escreveu e procura acabar o dia de filmagens antes das 5 da tarde para poder chegar cedo em casa e assistir a um jogo de baseball na TV. E nós, leitores, ficamos nos perguntando como é possível que, ainda assim, apesar de toda essa displicência, Woody Allen tenha conseguido realizar obras-primas como “Annie Hall”, “Manhattan” e “Hannah e Suas Irmãs”.

É evidente que Woody Allen se diverte tentando nos enganar, fingindo que é o que não é, e que não é quem de fato é. Essa brincadeira, no entanto, acaba prejudicando, a meu ver, a qualidade da sua autobiografia. De tanto insistir em sua nulidade como artista criador e intelectual, Woody termina não nos dizendo quase nada a respeito dos seus filmes, da sua inspiração ao escrever os seus roteiros e do seu método de trabalho como diretor. Ao mencionar cada uma de suas obras, Woody praticamente se limita a falar do elenco – sempre muito elogiado, principalmente as atrizes, todas consideradas belíssimas e excepcionalmente talentosas –, da recepção da crítica e da bilheteria. Quando um filme faz sucesso, ele se mostra surpreso. Quando fracassa, já era o que ele esperava.

Quando se trata dos filmes, esse modelo de exposição se torna repetitivo e um tanto cansativo. Além de frustrante, para quem gostaria de ter acesso a uma visão mais aprofundada do processo criativo desse autor cinematográfico de exceção. Quase ao final do livro, Woody explica que “não incluiu detalhes técnicos sobre as suas filmagens porque os acha chatos e não sabe mais sobre iluminação e fotografia, hoje, do que quando começou”. Mais que isso, ele acha que não tem nada de importante a oferecer aos estudiosos de cinema. Insiste que não sabe nada sobre a arte de fazer filmes nem tem nada de útil a dizer sobre seus métodos de trabalho. “Meus hábitos profissionais são preguiçosos e indisciplinados”, ele diz. “Trabalho todos os dias não porque eu seja um workaholic, mas porque isso me poupa de ter que encarar o mundo real, pelo qual eu não tenho nenhum apreço”.

Na verdade, Woody Allen estruturou sua autobiografia dando mais espaço e profundidade às suas relações amorosas e sua evolução ao longo do tempo do que à sua obra de cineasta. Ele escreve longamente sobre cada uma de suas namoradas e esposas, a maneira como as conheceu, como se apaixonou por elas e como as relações cresceram e acabaram. A impressão que um leitor pouco familiarizado com a obra de Woody terá, ao ler esse livro, é que a vida amorosa do autor sempre foi, para ele, muito mais importante do que a sua vida profissional. Pode até ser verdade, mas, pessoalmente, tenho minhas dúvidas. Acho que Woody traçou essa linha literária porque ele tinha um fim em mente: chegar à relação com Mia Farrow, à história do seu rompimento com ela e à tragédia pessoal que isso provocou.

Os altos e baixos do “namoro” de Woody com Mia ocupam aproximadamente um quarto do livro. Essa relação amorosa e profissional – Mia foi a protagonista em 12 filmes de Woody Allen -- durou 13 anos, durante os quais os dois nunca se casaram nem moraram juntos. Segundo Woody, ele também nunca dormiu no apartamento de Mia, que ficava em frente ao seu, do outro lado do Central Park, em Nova York. Ao escrever sobre o começo da relação, Woody descreve a sua admiração por aquela linda atriz loura que tinha sido casada com Frank Sinatra e com o maestro André Previn, e tido casos diversos com outros artistas importantes, inclusive Sven Nykvist, o diretor de fotografia sueco preferido de Bergman – e que mais tarde trabalharia com o próprio Woody.

O que chama a atenção na maneira como Woody descreve essa relação com Mia é que ele, compreensivelmente, jamais se refere a ela da mesma forma amorosa com que escreve sobre duas outras atrizes por quem foi apaixonado: Louise Lasser e Diane Keaton. A impressão que fica para o leitor é que Mia acabou sendo o que se chamava por aqui há alguns anos de uma “amizade colorida”, uma amiga com quem rolava eventualmente uma sessão de sexo.

Essa amizade acabou num dia de janeiro de 1992, quando Mia viu por acaso, em cima da lareira no apartamento de Woody, uma série de fotografias de sua filha adotiva Soon-Yi que o próprio Woody qualifica como “eróticas”. Pausa. Imagine qualquer mulher encontrando fotos da sua enteada nua no apartamento do namorado. Imagine, ainda mais, que esse namorado tenha 56 anos de idade e a sua enteada apenas 21. Fúria é pouco para imaginar o que Mia deve ter sentido e, provavelmente, dito para Woody na ocasião. Mas ele é conciso ao narrar o episódio. Só se arrepende de ter esquecido as fotos em local de fácil acesso, o que qualifica de uma idiotice. E ponto. Quanto à sua paixão por Soon-Yi, Woody a considera natural. Ele mal falava com ela enquanto namorava Mia, ela era apenas mais uma filha adotada por Mia e André Prévin, uma órfã vietnamita, uma figura distante. Woody só se aproxima dela quando a leva para assistir a jogos de basquete, por sugestão de Mia. Nessas saídas cresce a intimidade e floresce o amor entre os dois. Tente entender.

Woody é um sujeito estranho, já sabíamos, fora do padrão tanto por seu talento fora do comum como por suas fobias diversas. Sua esquisitice atinge o ápice com essa relação amorosa. Mas esquisitice, ao que eu saiba, não é crime. Woody faz questão de enfatizar que Soon-Yi era maior de idade, além de ser uma mulher muito inteligente que não gostava da mãe adotiva por que esta a considerava, ao contrário, lerda e retardada. Woody não menciona os atrativos físicos da sua última paixão, como havia feito com as anteriores, e nem poderia. Mas se derrama em elogios sobre o seu sentido prático, adquirido em anos de sobrevivência quando criança nas ruas do Vietnã natal, suas qualidades como mãe (eles adotaram duas crianças) e dona de casa, além do fato dela ter obtido um diploma de mestrado. Woody e Soon-Yi se casaram em 1997, estão casados desde então e tudo indica que, enfim, Woody encontrou a companheira com que sonhava.

O problema é que Mia Farrow não aceitou nunca essa relação. Para destruí-la, ela veio a público com a acusação de que Woody havia “molestado” Dylan, a filha de ambos, então com 7 anos. Seguiu-se a esse ataque um processo complicado – como tantos que nos acostumamos a assistir em filmes americanos, com advogados caros e ambiciosos e troca de acusações de baixo nível, a exemplo de “Kramer versus Kramer” e o recente “História de um Casamento” – tendo como objeto o direito à guarda dos filhos. Só que, neste caso, a acusação era tão grave quanto aparentemente absurda. Por que diabos um artista da sensibilidade de um Woody Allen iria “molestar sexualmente” sua própria filha? Woody defende-se com grande clareza e sobriedade nas páginas de “A Propos of Nothing”. O tom da escrita neste quarto final do livro muda completamente: não se trata de fazer graça ou levar na brincadeira acusações que atentam contra a sua honra.

Página após página, Woody coleciona e expõe brilhantemente argumentos irrefutáveis que demonstram a má-fé de Mia Farrow, a qual se utiliza de uma baixeza sem tamanho para obter a vingança de uma mulher duplamente ferida, como amante e como mãe. Woody nunca deixa de dar razão a Mia por seus sentimentos de raiva e despeito. Mas não lhe dá trégua quando demonstra de maneira sólida, ancorada no resultado de investigações independentes, que Mia não só fez uma verdadeira lavagem cerebral em sua filha para que esta confirmasse as acusações contra Woody, como ainda constrangeu seus demais filhos a sustentar a sua denúncia.

É claro que ninguém, além de Woody Allen e a própria Dylan Farrow, jamais saberá com absoluta certeza o que aconteceu ou deixou de acontecer entre os dois. Mas a história contada por Woody em sua autobiografia, a verdadeira razão, repito, para a sua publicação, não deixa dúvida em meu espírito de que ele foi vítima de uma cruel armação. O que torna ainda mais espantoso que atores veteranos e calejados tenham comprado a louca incriminação feita por Mia Farrow e se disponham a continuar a acusá-lo de crimes dos quais ele foi inocentado nas cortes judiciais. Tudo faz crer que essa barragem maciça erguida contra Woody seja, no fundo, um protesto contra a sua relação com Soon-Yi, que uma boa parte da sociedade americana, em sua hipocrisia e pruridos religiosos, deve considerar um “pecado” mais que um fato inusual. Certas coisas, definitivamente, só acontecem nos Estados Unidos, e mais ainda no mundo do cinema. Para os fãs de Woody Allen, a leitura de “A Propos of Nothing”, desnecessário enfatizar, é altamente recomendável. Para os demais, vale a leitura ao menos para não deixar de conhecer mais este episódio vergonhoso da história recente da cultura americana.

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