Críticas


LOST ZWEIG

De: SYLVIO BACK
Com: RÜDIGER VOGLER, RUTH RIESER
11.05.2007
Por Carlos Alberto Mattos
A HIPÓTESE COMO HISTÓRIA

A História, para Sylvio Back, não é uma mocinha recatada a quem se deva respeito. É antes uma puta sempre aberta à livre dramatização e às licenças da metáfora. Seu partido é o da dúvida, do questionamento das certezas. Assim foi com as missões jesuíticas (República Guarani), a guerra do Paraguai (Guerra do Brasil), a participação do Brasil na II Guerra Mundial (Rádio Auriverde). Assim é com a “vida brasileira” de Stefan Zweig, que ele retrata no ritmo compassado e solene de um réquiem.



Retratar não é bem o termo. As razões da vinda de Zweig e sua segunda mulher, Charlotte, para o Brasil em 1941, assim como suas estreitas relações com o governo Vargas, as circunstâncias que produziram seu livro Brasil, País do Futuro e, finalmente, os motivos do suicídio pactuado do casal, em fevereiro de 1942, nunca saíram de trás de uma certa bruma de mistério. Back já havia investigado tudo isso há dez anos no documentário Zweig: A Morte em Cena. Recolhera ainda mais dúvidas e contradições quanto a uma suposta troca de favores com Vargas, à esperança de Zweig de obter uma pátria para os judeus no Brasil, à orientação sexual do escritor e ao significado do exílio em sua psique já atormentada com a escalada do fascismo no mundo.



Daí que Lost Zweig seja não propriamente um exercício de biografia, mas a sustentação dramatizada de uma série de hipóteses. Às informações recolhidas no livro Morte no Paraíso, de Alberto Dines, somam-se os indícios recolhidos em entrevistas com amigos de Zweig, suposições e mesmo figurações puras e simples, tudo a serviço de um possível/provável preenchimento das muitas lacunas do caso. A esse processo, Sylvio Back dá o nome apropriado de “resgate ficcional”.



Para exprimir, por exemplo, a simultaneidade e similaridade da presença de Zweig e Orson Welles no Brasil, assim como a confessa admiração do segundo pelo primeiro, o filme promove dois encontros físicos entre os personagens durante o carnaval carioca de 42, filmado por Welles para It´s All True. As invenções “motivadas” não param aí. Em dado momento, Zweig é visto caindo em tentação homossexual. Em outro, é confrontado, nas dependências do Palácio do Catete, com uma terrível verdade sobre o sucesso de vendas de Brasil, País do Futuro. Foi a maneira que os roteiristas Back e Nicholas O’Neill (irlandês) encontraram para figurar uma versão corrente sobre o especial interesse de Vargas em fazer daquele livro um best seller.



Os puristas da historiografia terão dificuldades para atacar Lost Zweig, pois o filme se protege com habilidade. A narração é introduzida pelo próprio personagem, como se fosse parte de uma carta-testamento, e o filme se fecha com uma piscadela de humor post-mortem. Nos créditos finais, não sem alguma ironia, surgem os clássicos letreiros de “qualquer semelhança é mera coincidência”. Não há fidelidade factual a Zweig, nem mesmo à imagem do Brasil de 42. O país prosaico aparece apenas em duas ou três cenas que ficam a muitos anos-luz de qualquer ótica documental. O que importa é o rebatimento desse Brasil festivo e sensual na psique conflagrada do escritor. Por outro lado, a personificação da primeira mulher de Zweig, a distante Friderike, e a bipartição de Stefan nas cenas do jogo de xadrez – expressão feliz de uma crise de identidade – deixam patente a opção por uma narrativa não realista. Lost Zweig é a plena apropriação de um assunto por um artista afetado pessoalmente por ele.



De fato, Sylvio Back tem mais de uma razão para ver no drama de Zweig algo além de uma curiosidade histórico-cultural. Por trás de muitas palavras do escritor austríaco, percebe-se a teimosia do próprio diretor na defesa de um livre pensamento infenso a alinhamentos ideológicos. Na retomada de uma temática ligada à imigração e a suas origens judaico-européias, o cineasta volta a colocar o dedo na difícil questão das simpatias brasileiras (e latino-americanas) pelo nazi-fascismo até quase a metade da II Guerra Mundial, tema do corrosivo Aleluia, Gretchen.



Por fim, mas não por menos, existe a identificação pessoal: Back é filho de um judeu húngaro suicida, e não deixa de ser intrigante que tenha dado a sua filha o nome de Charlotte. Um suicida (o pintor paranaense Miguel Bakun) já assombrara um de seus documentários, O Auto-retrato de Bakun. Em Lost Zweig acumulam-se as referências à morte desejada, planejada e executada com requintes teatrais e mesmo eróticos (ver a belíssima cena em que Lotte se prepara para deitar-se definitivamente ao lado do marido). Há lugar até para uma improvável – mas cabível – conversa de Stefan e Getúlio sobre a forma de morte que a ambos tocaria mais adiante.



Tudo o que o roteiro reúne e relaciona, ousada mas harmonicamente, converge para dar, mais que uma explicação, um sentido à decisão de Zweig de sair da vida. Na trajetória final do escritor, da Alemanha ao Brasil e do Brasil ao éter, não há limites nítidos entre a fuga reiterada e a rebelião, a covardia e a lealdade a uma utopia.



Fruto de uma longa obstinação, perseguida pelos últimos cinco ou seis anos, Lost Zweig é o feliz encontro de uma tema, uma linguagem e uma produção afinados. Com movimentos compassados e elegantes, dentro de um estilo clássico que se diria “europeu”, Back constrói planos-seqüência arrojados e extrai pathos de cada elemento da cenografia. Este é talvez o seu melhor filme desde Aleluia, Gretchen. Aquele onde a excelente fotografia, a montagem hábil e a trilha sonora à primeira vista incongruente resultam num todo harmônico e numa sutil complexidade de sentidos superpostos.



Rüdiger Vogler, apesar de algumas pausas equivocadas, encarna o Stefan Zweig denso e atormentado que podíamos mesmo imaginar, enquanto a bela Ruth Rieser o acompanha no diapasão adequado. O elenco brasileiro, expressando-se num inglês bastante digno, também está irretocável. A exceção é de Renato Borghi, que não consegue reverter suas afetações de praxe em benefício da caracterização de Getúlio Vargas.



Entre vários momentos memoráveis, destacam-se as últimas ações de Lotte, em silêncio comovente, antes de juntar-se ao marido no leito de morte. Isso bastaria para dar provas de um realizador em pleno domínio de sua maturidade, conciliando o trágico e o sensual, o inferno e o paraíso, de maneira impecável.





LOST ZWEIG

Brasil, 2003/2007

Direção: SYLVIO BACK

Roteiro: SYLVIO BACK, NICHOLAS O’NEILL

Fotografia: ANTONIO LUIZ MENDES

Montagem: FRANCISCO SÉRGIO MOREIRA

Música: GUILHERME VERGUEIRO, RAUL DE SOUZA

Elenco: RÜDIGER VOGLER, RUTH RIESER, RENATO BORGHI, DANIEL DANTAS

Duração: 114 minutos

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