Críticas


24 VERDADES POR SEGUNDO

De: EVA TESTOR, NINA KUSTURICA
Com: MICHAEL HANEKE
15.07.2020
Por Luiz Baez
Sobre quantas mentiras cabem em um frame

Tal qual os etnólogos, os documentaristas frequentemente vão “a campo” com uma hipótese a ser corroborada ou refutada durante as filmagens. Eva Testor e Nina Kusturica, ex-alunas da Filmakademie Wien, onde Michael Haneke leciona, propuseram-se a acompanhar o cineasta por um período de dois anos e meio - entre os longas-metragens O tempo do lobo (Le temps du loup, 2003) e Caché (2005) - para investigar uma suposição básica: seus filmes contam 24 verdades por segundo - ou, no original alemão, 24 Wirklichkeiten in der Sekunde. Ao longo do processo, o argumento da dupla parece diluir-se, mas curiosamente ela não se desfaz do título preconcebido. Em vez disso, insere, desde o início, um importante contraponto: segundo o próprio protagonista, suas películas contam 24 mentiras por segundo, mas sempre a serviço de uma verdade, isto é, de uma verdade cinematográfica.

Nessa lógica, o média-metragem de Testor e Kusturica se desenvolve como frustradas tentativas de dar sentido à obra de Haneke. Em um primeiro âmbito, a performance jornalística de um saber absoluto - objeto de crítica diegética em Caché - tenta organizar um discurso a respeito do realizador e de seu cinema. Na première de O tempo do lobo em Cannes, Haneke antecipa qualquer pergunta com “não me peça para contar a história” e jura não se lembrar das motivações por trás do roteiro. Após montado o filme, considera seu trabalho pronto, mas as mídias insistem em inquiri-lo na busca por significados. Tal consideração encaminha uma segunda frustração, qual seja, a do público. Constantemente se tenta conformar o cineasta a uma visão pessimista de mundo, algo por ele rejeitado a partir de pressupostos nietzscheanos - Haneke, vale lembrar, estudou Filosofia na Universidade de Viena. Indignada, muitas vezes a plateia deixa as sessões com manifestações de desagrado - fenômeno chamado por Thomas Elsaesser de “irrupções”. Na apresentação de O tempo do lobo, por exemplo, o diretor ironicamente deseja uma projeção “tecnicamente boa, mas mentalmente irritante”, e os espectadores não se furtam a tornar pública essa irritação, como bem mostra o documentário.

Frustrado o desejo identificador de quem frui as obras, elas também decepcionam, em certa medida, seu próprio criador. Embora relate uma predileção por O sétimo continente (Der siebente Kontinent, 1989), 71 fragmentos de uma cronologia do acaso (71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls, 1994) e Código desconhecido (Code inconnu, 2000), Michael Haneke dificilmente se satisfaz com os resultados. Em 24 verdades por segundo, queixa-se com o produtor sobre o cronograma, com a diretora de arte sobre o uso diegético de fotografias e insetos, com a montadora sobre as tomadas filmadas, e até com a organização do festival sobre a claridade excessiva da projeção. Às vezes reclama consigo mesmo em terceira pessoa: a criação foge ao controle, como já alertava seu pai, para quem só 40% do planejado permanece ao final. Por fim, a quarta e última frustração diz respeito às já mencionadas premissas de Eva Testor e Nina Kusturica. 

Por quase uma hora, Testor e Kusturica tentam dar conta do cinema de Haneke. Associam o antigo desejo de tornar-se músico à importância do som - e em especial do som fora de quadro - em sua filmografia; conversam sobre as primeiras memórias das salas escuras: entre as quais se destacam o medo provocado por Hamlet (1948), de Laurence Olivier, e, em uma sessão de Tom Jones (1963), a percepção, além de teórica (sintetizada na Alemanha pela figura de Leni Riefenstahl), sobretudo sensível dos potenciais ilusórios e manipulativos da Sétima Arte - evidenciados por meio da quebra de quarta parede, recurso brechtiano característico de Violência gratuita (Funny Games, 1997) -; sugerem nas profissões dos pais (mãe atriz e pai diretor de teatro) vetores de influência, mas Haneke cresceu criado pela tia. Em última instância, fracassam em sua hipótese inicial, mas sem que isso prejudique a “pesquisa”. Ainda que sugiram relações, enfim, algo de ininterpretável persiste: uma reorganização simbólica de 24 mentiras por segundo, sempre em direção a uma verdade.

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