Críticas


LÊMINGUES – PARTE 1: ARCÁDIA

De: MICHAEL HANEKE
Com: REGINA SATTLER, CHRISTIAN INGOMAR, EVA LINDER
21.07.2020
Por Luiz Baez
O mal-estar em uma geração

A consciência da própria finitude diferencia o humano dos demais animais, dizem estudos antropológicos. Mais adiante, a possibilidade de antecipar esse inescapável destino estabelece ainda outra distinção. Por muito tempo, é verdade, a falsa observação de um fenômeno estendia a prerrogativa do suicídio à espécie dos lêmingues, pequenos roedores que perecem em bando durante as migrações. De fato, não a vontade individual, mas circunstâncias acidentais provocavam tais mortes coletivas: dissociadas, portanto, do mal-estar vivenciado pelas personagens de Lêmingues (Lemminge, 1979), dupla de filmes dirigidos por Michael Haneke para a televisão austríaca. 

A primeira parte, Arcádia (Arkadien, 1979), título em referência à região idílica da mitologia grega, acompanha um grupo de jovens no processo de descoberta da vida - ou da sexualidade -, mas também da morte - ou das angústias de uma geração nascida no pós-guerra. Nesta lógica, embora mais velhos - já adolescentes - e temporalmente sucessores - em 1959 -, eles prognosticam uma preocupação de A fita branca (Das weiße Band, 2009): qual seja, como romper com um ciclo de violência e policiamento? Um dos protagonistas, Fritz Napravnik não se sente confortável na própria casa, com um pai agressivo que sequer o deixa receber a visita de amigos. Mais do que psicológicas, no caso de Sigurd Leuwen, as consequências da guerra se manifestam fisicamente, com um pai amputado e uma mãe tetraplégica. Ao passo que o primeiro perpetua a lógica da dominação envolvendo-se sexualmente com a mulher do professor de piano, que o tinha como um de seus alunos preferidos, o segundo violenta Anna, enfermeira da mãe, tanto indireta - masturba-se enquanto ela troca de roupas - quanto diretamente - confere-lhe um golpe de jiu-jitsu.

Tal qual em A fita branca, ademais, uma série de crimes de autoria desconhecida ocupa a tela desde os minutos iniciais. Ao som de Lonely Boy, de Paul Anka - a influência da cultura e da música estadunidenses naquela geração comanda a escolha da trilha, que também conta com Brenda Lee, Elvis Presley, dentre outros -, automóveis se destroem nas mãos de duas figuras capturadas pelo retrovisor. À diferença do filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes, porém, os responsáveis pelo crime se revelam ao fim da projeção. Confessam os perpetradores, permanece oculto o motivo. Neste momento, o suicídio de uma personagem, como o de Majid em Caché (2005), não só explicita o sentido do título, Lêmingues, mas sobretudo certifica a natureza não identificável daquele mal-estar. Conquanto não se entendam as razões por trás dela, a atitude parece inspirar outras personagens.

Se Haneke começa a desenvolver alguns de seus principais temas, o mesmo se pode dizer a respeito das técnicas cinematográficas. Assim como em A professora de piano, os créditos iniciais seguem o ritmo da música. Em La pianiste (2001), a montagem dispõe, entre um e outro aluno de Erika Kohut, os nomes da equipe: recurso muito semelhante à interposição de cartelas vermelhas entre os passos dos jovens na aula de dança em Lêmingues - Parte 1: Arcádia (Lemminge - Teil 1: Arkadien, 1979). Enquanto constrói uma linguagem particular, contudo, o cineasta não deixa por isso de referenciar seus mestres. Incorpora, nesse sentido, discussão cênica sobre A fonte da donzela (Jungfrukällan, 1959) - reforçando, assim, uma fidelidade a Ingmar Bergman apontada em outra oportunidade

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