Críticas


MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS

De: ALAIN RESNAIS
Com: SABINE AZÈMA, PIERRE ARDITI, ANDRÉ DUSSOLLIER
12.07.2007
Por Luiz Fernando Gallego
SOLIDÃO A DOIS

Na primeira cena de Medos Privados em Lugares Públicos, Nicole (Laura Morante), cliente do corretor de imóveis Thierry (André Dussollier), descobre que o apartamento que estão visitando é um falso “três quartos”: um dos cômodos foi dividido, tendo uma mesma (meia) janela para os dois ambientes. Com isto, diz ela, se uma pessoa em um dos lados da parede sente frio e a outra sente calor, o uso da janela, aberta ou fechada, irá gelar um ou sufocar o outro.



No momento em que se dá este diálogo, neva lá fora - e nevará durante todo o filme. A neve caindo, onipresente, se fará notar na dissolução de cada cena para a entrada da seguinte. Chega mesmo a “nevar” dentro do que seria um ambiente fechado, cobrindo, poeticamente, as mãos de Charlotte (Sabine Azèma) e Lionel (Pierre Arditi), tal como as cinzas de Hiroshima recobriam os corpos dos amantes na primeira cena de Hiroshima, meu Amor, o primeiro longa-metragem de Alain Resnais, em 1959 - diretor que permanece filmando aos 84 anos.



O que importa na abertura de Coeurs (título original) é a antecipação de uma das idéias centrais do filme: a dificuldade de conviver de forma próxima em um ambiente dividido por uma parede levantada, ainda que incompleta, compartilhando uma mesma janela para o exterior – ou seja, metáfora um tanto óbvia sobre a solidão como resultado da dificuldade de compartilhar duas vidas. Nicole procura um apartamento de três quartos porque Dan (Lambert Wilson), seu noivo, quer um escritório em seu futuro lar, quando casarem. O corretor pergunta desta necessidade, se seria relacionado ao trabalho de Dan – mas ele está desempregado. Mais adiante ele dirá a Lionel (barman em um hotel onde Dan costuma se embebedar) que, diferentemente da mulher, o homem sente necessidade de estar só de vez em quando. Do ponto de vista dele, a sala, o quarto do casal, a cozinha, serão territórios de Nicole – e o espectador depreende que o indispensável escritório seria um “espaço” exclusivo para Dan se retirar, ficar só.



Nicole tenta se enganar e diz platitudes como: “Se ele fica feliz tendo um escritório, por que não lhe proporcionar isto?” – mas logo percebemos que há enormes dificuldades individuais interferindo na realização do projeto do casamento, dificuldades metaforizadas nos empecilhos para encontrarem um ambiente ideal para residirem.



Esta é apenas uma das várias combinações de sete personagens que tentam formar duplas impossíveis, tema do enredo que é uma transposição para Paris da peça londrina Private Fears in Public Places, de Alan Ayckbourn - o mesmo autor teatral que serviu a Resnais no seu díptico de 1993, Smoking/No Smoking, radicalização da tendência “teatral” que o cineasta já havia explicitado em Providence (1977) e seus cenários intencionalmente artificiais em grande parte da ação noturna - e em Mélo (1986), que já reunia Azèma, Dussollier e Arditi, trio freqüente em filmes de Resnais e novamente reunido neste Coeurs.



Aqui, as duplas também se movimentam (ou ficam paralisadas) em ambientes com aspecto de cenários teatrais brilhantemente concebidos por Jean-Michel Ducourty e admiravelmente fotografados por Eric Gautier. O bar de hotel onde se passam alguns dos encontros e desencontros da trama pode lembrar a luminosidade enevoada da festa inicial de De Olhos Bem Fechados e (em outro tom) o clima insólito de outro bar de hotel, o de O Iluminado - ambos de Kubrick, fotógrafo antes de dirigir filmes.



Apesar da mise-en-scène fascinante e da excelência dos atores, Medos Privados em Lugares Públicos é feito de um enredo que impede, mais uma vez, que os filmes recentes de Resnais cheguem aos pés de muitos de seus filmes mais antigos. Os personagens e situações são de tal obviedade para a abordagem do tema da solidão humana que, além do clima melancólico, pretendido e atingido graças à capacidade do cineasta crepuscular, chega a se sobrepor um certo desconforto com tantos clichês na composição dessas vidas mescladas ao longo dos 120 minutos de filme. Um pai idoso, doente e intratável que um filho precisa cuidar (o pai “aparece” apenas através da voz de Claude Rich, adequadamente irritante); a moça que marca “blind dates” frustrados (Isabelle Carré); a mulher religiosa que talvez esconda uma faceta diversa de sua persona pública (personagem que praticamente só se salva graças à sempre excelente Sabine Azèma) – estes e os demais talvez soassem menos estereotipados em um filme menos solene e de linguagem menos sofisticada e elegante, como apareceriam, por exemplo, em filmes de viés mais “naturalista”, tão comum na cinematografia anglo-americana.



A ambição explícita na abordagem da dificuldade de convivência que leva à solidão iniludível foi mal servida pela base utilizada, que é a peça de Ayckbourn tal como surge na tela, roteirizada por Jean-Michel Ribes. Se o tema é atemporal, algumas coisas soam datadas e desenvolvidas com pouca ou nenhuma originalidade, seja pelo autor inglês, seja pelo roteirista francês.



Há notícias de que o elenco, em grande parte familiar ao cineasta, já estava pronto para um outro projeto que, de última hora, teve que ser substituído por este. O que talvez explique a estranheza de Dussollier surgir como um irmão de aparência tão mais avançada em anos do que Isabelle Carré. Apesar de ter sido mencionado anteriormente que ele residia com uma irmã, quando os dois aparecem juntos pela primeira vez, não há como não supor uma filha e um pai. Mas não: eles interpretam - ainda que ambos se mostrem competentes em cada personagem isoladamente - irmão e irmã por demais inverossímeis.



Mas Resnais é mesmo um entusiasta das peças de Ayckbourn, e deve ser atribuída a ele a escolha pouco satisfatória de tão pobres exemplos para o tema da solidão. Cineasta que jamais escreveu um roteiro de seus longas-metragens, Resnais repetiu, de certa forma, o destino de Orson Welles: ao começar por tão alto com Cidadão Kane, dificilmente poderia “evoluir” para obras ainda melhores. Mas, assim como Welles foi capaz de realizar, por exemplo, filmes às vezes preferidos por alguns de seus entusiastas, como A Marca da Maldade, Resnais, depois das obras-primas que foram Hiroshima e Ano Passado em Marienbad, ainda nos deu, dentre outros, A Guerra Acabou, Providence e Meu Tio da América, todos extraídos de magníficos roteiros de, respectivamente, Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jorge Semprún, David Mercer e Jean Gruault - roteiros que ele foi capaz de transformar em imagens e narrativas de excepcional inteligência cinematográfica.



Com base literária menos criativa e apesar da idade avançada, ele se mostra capaz de filmar com elegância e amarga ternura situações e personagens melancólicos - mesmo que insatisfatórios. Mas é impossível não recordar, com enorme desvantagem para este filme, de outro com algumas características semelhantes, também de um gigante do cinema: Sarabanda, o mais recente do igualmente octogenário Bergman, evoluindo em cenas de “duetos” dos personagens e em cenários “não-naturais”, com bem mais consistência e dramaticidade.



As qualidades cinematográficas acabam por se chocar com as fragilidades do roteiro. A boa mise-en-scène soa “excessiva” para o material de base, fazendo de Medos Privados em Lugares Públicos um filme duplamente melancólico sobre a solidão: pelo filme que é e pelo que suas histórias não conseguem ser.



# MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (COEURS.)

França, 2006

Direção: ALAIN RESNAIS

Roteiro: JEAN-MICHEL RIBES, da peça de ALAN AYCKBOURN "Private Fears in Public Places"

Fotografia: ERIC GAUTIER

Montagem: HERVÉ DE LUZE

Música: MARK SNOW

Direção de Arte: JEAN-MICHEL DUCOURTY

Elenco: SABINE AZÈMA, PIERRE ARDITI, ANDRÉ DUSSOLLIER, LAMBERT WILSON, LAURA MORANTE, ISABELLE CARRÉ

Duração: 120 minutos

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