Críticas


WIM WENDERS E A MORTE

16.07.2007
Por Carlos Alberto Mattos
WIM WENDERS E A MORTE

Os três documentários que Wim Wenders realizou entre 1979 e 1984, recentemente lançados em DVD no Brasil pela Europa Filmes, formam uma curiosa trilogia sobre a morte. Em Um Filme para Nick (Lightining Over Water), WW filma um mestre do cinema, Nicholas Ray, em seus dias terminais. Em Tokyo-Ga, ele sai atrás das memórias de outro mestre já desaparecido, Yasujiro Ozu, e procura traços de um Japão que também não existe mais. Em Quarto 666, pede a seus pares bem vivos que falem da hipótese da morte do cinema.



Um Filme para Nick



Wenders é dado a compromissos filiais. Foi assim com um debilitado Antonioni, quando assumiu o posto de diretor-reserva para tranqülizar os produtores de Além das Nuvens. Quinze anos antes, ele já havia feito esse “Filme para/com Nick”, atendendo a um desejo de Nicholas Ray (1911-1979), debilitado pelo câncer. Ray gostaria de filmar Lightning over Water, a história de um pintor em estado semelhante ao seu – “um homem que quer se recompor antes de morrer”. Wim se instala no loft de Ray e inicia uma inusitada colaboração.



Na verdade, eles apenas discutem sobre o projeto e sobre a proximidade da morte, e esse será o filme de verdade, assinado a quatro mãos. Não é um documentário estrito, já que a movimentação de Wim é pré-decupada, as conversas são pré-escritas, o som é editado em falsas simultaneidades. Embora Ray questione se uma determinada fala não tinha parecido encenada, nota-se que o pacto entre os dois é assumidamente ficcional. Mesmo assim, como diz Wim a certa altura, a realidade insiste em sobrepujar a ficção.



O essencial: como todos os docs de WW, esse é um filme que pensa a si mesmo enquanto se constrói. Wim reflete seguidamente sobre sua relação com Ray (que atuara em O Amigo Americano) e os efeitos do filme sobre o paciente. Em outro momento, apesar das crises de tosse e do sofrimento crescente de Ray, ele diz achar tudo muito limpo até ali. Talvez por isso, tenha incorporado à montagem final as cenas de VHS, que às vezes funcionam como making of.



Tudo isso diz respeito à versão lançada agora pela Europa, que não é a mesma que circulava em vídeo desde 1987. Naquela, o sofrimento de Ray era mais presente e as reflexões de Wim, mais esparsas. As cenas do barco chinês com as cinzas de Ray na baía de Nova York, agora espargidas em várias partes do filme, mantêm o caráter excessivamente conceitual, que não combina com o resto desse sóbrio tributo. Consta que Wenders achou depressiva a edição de Peter Przygodda e aprontou esse “corte do diretor”.



A morte, para Nicholas Ray, era um inimigo a confrontar, ainda que o duelo fosse de cartas marcadas. Ele queria morrer filmando, o que quase aconteceu literalmente. Para Wim, a morte do mestre era um motivo extremo para lhe dar a última palavra. E a última palavra de Ray no cinema ficou sendo um imperioso “Corta!”.



Obs.: A edição não tem extras, mas a boa qualidade de som e imagem, preservando o formato widescreen, é compensadora.



Tokyo-Ga



Quatro anos depois de filmar o testamento de Nicholas Ray e paralelamente à rodagem de Paris Texas, Wim Wenders resolveu prestar um tributo a Yasujiro Ozu (1903-1963). Viajou a Tóquio com equipe mínima e olhar afiado para perceber o que ainda restava do Japão descrito nos filmes de Ozu e o que estava irremediavelmente perdido. Acabou fazendo um dos primeiros filmes sobre a globalização.



“Tokyo-Ga” significa Imagens de Tóquio. Em 1983, vivia-se a primavera do virtual e do simulacro. Junto com as cerejeiras, floresciam em Tóquio as telas, os videowalls (lembram?), a estética dos mangás, a imitação dos EUA entre os garotos rockabilli de Harajuku. WW não se preocupava em passar informações. Apenas passeava e refletia pelas lojas barulhentas de pachinko, os bares de Shinjuku. Detinha-se com compreensível espanto em duas atividades definidoras daquela era: o arremedo de golfe em massa praticado em terraços de prédios ou num estádio; e a fabricação de pratos artificiais para vitrines de restaurantes.



Para WW, o excesso de imagens e o vazio de conteúdo anunciavam um novo tempo, bastante distinto do Japão familiar e recatado dos enredos de Ozu. Como escreveu na época o crítico Vincent Canby, talvez Wenders tenha simplesmente procurado Ozu nos lugares errados. Mas Ozu, claro, é também um pretexto para aferir o estado da civilização das imagens. A imagem bruta e descontextualizada perde o sentido como um filme no avião sem os fones de ouvido. Diante de uma tela de TV, Wenders sintetiza a mecânica da globalização: “A TV virou o centro do mundo. O Japão fabrica TVs para o mundo ver as imagens dos EUA”. Pronto, disse tudo.



Wenders encontra-se com Werner Herzog no alto da Torre de Tóquio: quanto precisaremos subir para encontrar imagens puras?, pergunta-se o romântico amante das montanhas. Do encontro com Chris Marker, não ficou mais que uma raríssima exposição (assim mesmo parcial) do rosto desse elusivo pensador da imagem.



Mas a homenagem a Ozu não é apenas motivo para toda essa série de reflexões. Ela responde também pelo outro pólo de Tokyo-Ga. O filme abre e fecha com a abertura e o desfecho de Viagem a Tóquio, uma das obras-primas de Ozu. Dois grandes blocos são dedicados a entrevistas com o ator Chishu Ryu e o cinegrafista Yuuharu Atsuta, que acompanharam quase toda a carreira de Ozu. Eles contam detalhes deliciosos sobre o trabalho com o mestre. A reverência emocionada com que falam de Ozu, mesmo quando é a respeito de seu temperamento difícil, diz muito do que WW está querendo tratar com esse filme sobre a perda de substância e de uma certa ordem que faziam do mundo um lugar mais nobre. Esse olhar de Wenders, em obras posteriores, se revelaria um tanto estereotipado e redundante, mas aqui ainda repercute com o frescor das descobertas.



Nunca, talvez, como nesse filme e em Nick’s Movie, Wim Wenders expôs tão claramente – e na primeira pessoa – a sua filosofia moralista da expressão audiovisual.



Tokyo-Ga carrega o subtítulo de Um Diário Filmado. Era uma mania de WW nessa época. Um ano antes, ele havia apresentado o curta Reverse Angle, um apanhado de anotações sobre livros, quadros, o trabalho de montagem de Hammett e ruminações sobre sua passagem da Europa para a América. Em 1989, voltaria ao Japão com o estilista Yoji Yamamoto e integraria a moda a seu campo de considerações em Notas Sobre Cidades e Roupas. O cinema, nesse período, era para Wenders uma forma de viver e um instrumento de pensar.



Obs.: O DVD de Tokyo-Ga vem desprovido de extras e a imagem fullscreen deixa entrever uma perda em relação ao quadro original. A parte da filmagem feita em 16mm faz-se sentir na qualidade da reprodução.



Quarto 666



A camareira do quarto 666 do Hotel Majestic durante o Festival de Cannes de 1982 pode botar um recorde no seu currículo: ninguém serviu a maior número de criadores do cinema num só ano. Por ali passaram 14 grandes diretores, além de Wim Wenders, que os convidava para uma entrevista sui generis. Cada um ficava sozinho diante de uma câmera, um gravador Nagra e uma folha de papel com perguntas sobre a sorte do cinema numa era dominada pelo vídeo e a TV. Tinham 10 minutos para ser sinceros.



Wenders estava apavorado. O cinema como forma de arte lhe parecia agonizante. O tema (ou temor) ecoava tanto em Um Filme para Nick como em Tokyo-Ga. Ele queria ouvir seus pares, fosse para confirmar o apocalipse, fosse para confortá-lo com alguma mensagem mais otimista. Encontrou ambas as opções.



Nossa Ana Carolina foi uma das mais enfáticas: “O autor desapareceu (...) e o cinema eletrônico não interessa ao verdadeiro artista”. Antonioni, já falando do laser, escolheu o pólo oposto: “É preciso adaptar-se para sobreviver”. O dispositivo criado por WW deixa uma tamanha liberdade ao “entrevistado” que lhe possibilita construir-se totalmente na solidão relativa do quarto. Assim, tanto Godard como Spielberg falam de cinema e comércio, mas cada um no seu extremo: Godard como crítica, Spielberg como cálculo.



Da mesma forma, é fascinante ver como cada um se apresenta fisicamente: Godard relaxa na poltrona, dá suas baforadas e controla o tempo com um cronômetro. Outros falam de pé, impacientes. Herzog tira os sapatos e meias. O turco Yilmaz Güney (Yol) nem aparece, escondido que estava da polícia de seu país, e é “representado” por uma gravação de áudio e uma foto feitas pelo próprio Wenders.



Todo o pânico de WW parecia relativizado 20 anos depois, quando ele gravou o excelente audio-comentário para o DVD. Vale a pena ver o média-metragem duas vezes, sendo a segunda com o comentário devidamente legendado. Wenders se auto-critica e se diverte, comparando os contextos das duas épocas e relembrando detalhes das filmagens. Sua análise da fala de Godard é quase tão boa quanto a própria fala de Godard. Wenders comenta baixinho, como se ainda estivesse ali no quarto. Quando Ana Carolina se despede com um “obrigado”, ele responde “de nada” em 2002.



Impressionante é a iminência da morte. Fassbinder faleceria dali a apenas três semanas. Foi a última vez que os dois amigos e companheiros de Novo Cinema Alemão se viram. Antonioni, em um ano, estaria imobilizado e silenciado por um derrame cerebral. Güney morreria dois anos depois. O cinema, porém, se renovou com o digital e se disseminou pelas redes numa nova forma de vida. Wenders continuou fazendo grande arte, como Estrela Solitária (Don´t Come Knocking).



Vale lembrar que, nos anos 1990, WW faria dois filmes com características documentais que trataram de um nascimento (Um Truque de Luz, sobre os Irmãos Skladanovsky, inventores do bioscópio, um predecessor do projetor de cinema) e um renascimento (Buena Vista Social Club). Alguma coisa mudou na relação do documentarista Wim Wenders com o mundo.



Obs.: A edição do DVD é excelente, com legendas complementares para os comentários. A registrar apenas uma legenda que identifica Fassbinder erroneamente como Noel Simsolo e, no estojo, a sinopse da contracapa, que diz respeito a O Amigo Americano.





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