Críticas


PRIMO BASÍLIO

De: DANIEL FILHO
Com: DÉBORA FALABELLA, FÁBIO ASSUNÇÃO, GLÓRIA PIRES
12.08.2007
Por Luiz Fernando Gallego
SANTOS NOMES EM VÃO

Na porta de um cinema carioca que está exibindo a nova versão para as telas do romance de Eça de Queiroz, Primo Basílio, há reprodução de matéria de jornal paulista onde o diretor Daniel Filho se refere aos cineastas Douglas Sirk e William Wyler como modelos inspiradores na composição de cenas e climas emocionais deste seu filme. Um antigo ditado dizia que “elogio em boca própria é vitupério”. Mencionar dois autores cinematográficos com títulos clássicos na história do cinema para passar uma idéia da qualidade artística que o próprio filme teria é uma desfaçatez que pode piorar a impressão do cinéfilo que tenha lido tais disparates – se é que a impressão sobre o filme pudesse ser melhor sem pensarmos nos autores mencionados.



A matéria destaca uma cena onde ‘Juliana’ e ‘Luiza’ estão em degraus diferentes de uma escada; a primeira é empregada da outra e tem poder sobre a patroa, pois detém provas de um caso extra-conjugal de Luiza. Como Juliana está em um degrau mais alto do que a outra, o diretor diz que a situação espacial em que colocou as atrizes remete a famosas cenas de interiores dos filmes de William Wyler onde o uso da configuração diagonal de escadas proporcionou grandes cenas dramáticas.



De fato, há cenas clássicas que se passam em escadas de mansões em filmes de Wyler, como quando Bette Davis deixa o marido morrer escada acima, sem lhe entregar o remédio que tomava para o coração combalido (Pérfida, de 1941). Esta filmagem foi objeto de uma famosa análise de André Bazin sobre o recurso de “profundidade de campo”, marca registrada do grande fotógrafo Gregg Toland que serviu a tantos filmes de Wyler e de Orson Welles (com destaque para Cidadão Kane).



Recordar esta cena de Pérfida - ou a cena final de Olívia de Havilland subindo as escadas em Tarde Demais ou mesmo as tomadas oblíquas angustiantes da versão original de Horas de Desespero, dentre outros filmes de Wyler - só faz supor que o diretor deste Primo Basílio considere a disposição cenográfica das personagens em planos diferentes de seu filme como algo muito criativo do ponto de vista simbólico e formal quando não passa de uma obviedade sem maior resultado dramático. Na verdade, o filme carece durante quase todo o tempo de uma sintaxe cinematográfica fluente, justapondo as cenas em seqüência burocrática, com tomadas em planos fechados ou, de modo geral, na forma convencional de “proximidade” dos atores que é muito utilizada na linguagem televisiva.



Aliás, recordar a versão em mini-série feita para TV (que foi co-dirigida pelo mesmo Daniel Filho e Reinaldo Boury) há quase vinte anos, também só faz piorar comparativamente a avaliação do filme atual. As mesmas personagens da cena da escada, tão auto-elogiada pelo diretor, foram vividas anteriormente por Marilia Pêra e Giulia Gan, formando uma dupla com alta voltagem dramática – o que não se repete entre Glória Pires e Débora Falabella, apesar dos esforços de ambas. A primeira, com boas atuações em filmes mais antigos como Memórias do Cárcere e Besame Mucho, desta vez está apenas caricata na tentativa de compor a malvada chantagista; somente as linhas do diálogo transmitem parte de sua condição de criada humilhada que se vinga através da arrogância e da ambição desmedida ao pretender uma quantia que seria impossível para sua patroa conseguir lhe dar. A “escola naturalista” de formação de ator televisivo desta vez não foi suficiente para a atriz repetir suas participações frequentemente elogiadas.



Se Débora Falabella consegue um resultado mais vivo, teve que lutar contra a evolução um tanto precipitada de sua personagem no envolvimento com seu primo, conseguindo melhores resultados na “segunda parte” quando se vê vítima de chantagem doméstica. Reynaldo Gianecchini acaba sendo uma surpresa (relativa) de boa participação de ator em seu papel – embora nem um Robert De Niro sobrevivesse à frase que lhe é destinada numa cena de sexo com a esposa quando ele a chama de “ave da noite” e faz algum elogio à conduta sexual “solta” de sua parceira. A cena fica constrangedora, tal como a trilha sonora de insistência e onipresença cansativas – recurso que testemunha a intenção de dar excesso de “emoção” a um enredo que já é passional e melodramático.



O melodrama é um dos gêneros mais arriscados, passível de resvalar a todo momento para o dramalhão e mau-gosto. O despudor dos roteiros lacrimosos com sutis ambigüidades nos filmes de Douglas Sirk encanta muitos cinéfilos e diretores, como Almodóvar e Fassbinder; em Longe do Paraíso, de 2002, seu universo foi recriado por Todd Haynes (com inestimável contribuição da atriz Julianne Moore em desempenho antológico) sem se constituir em apenas uma clonagem, mas com uma boa dose de inovação. Já William Wyler nos deixou melodramas mais contidos e “classudos”, onde vale a pena destacar, dentre muitos outros, Infâmia e Perdição por Amor, este com o melhor desempenho de Laurence Olivier nas telas.



Mesmo que Daniel Filho não mencionasse tais cineastas, seu filme não soaria melhor, não passando de mais uma tentativa de fazer cinema como quem faz TV, incluindo a – legítima – preocupação com a bilheteria ao utilizar nomes de atores conhecidos do grande público (exatamente por serem bem visíveis na TV). Mas isso tem levado à realização de filmes como este, com resultados anódinos. E, neste caso, a pretensão de se comparar a grandes nomes do cinema só faz piorar as coisas.



Dentre os poucos acertos parciais do filme, há desempenhos satisfatórios em papéis secundários, como o de Zezeh Barbosa, que faz uma outra empregada e que quer bem à sua patroa de forma bem submissa - como seriam muitas domésticas dos anos 1950 no Brasil, quando o filme se passa. Tal transposição da trama lusitana do século XIX para a São Paulo da época de construção de Brasília foi uma boa idéia que – infelizmente - não funciona totalmente a contento.



Como em toda a concepção do filme, o que parece importar são a superfície e as aparências externas: o período é recriado a partir de carros, figurinos e decoração de interiores seguindo os padrões da época. Destaca-se um sempre enfocado espelho de formato sinuoso com incrustação de enfeites que é uma verdadeira logomarca da década, sem que o filme consiga refletir a contento - ou com o mínimo de aprofundamento - características psicológicas e sociais daqueles tempos, satisfazendo-se em transplantar a situação de chantagem por adultério para outro tempo e lugar. Tudo fica dependente dos diálogos para tentar atingir seus objetivos, sem alcançar uma narrativa propriamente cinematográfica. As cenas se sucedem de forma convencional e mecânica, contrastando com a “música de fundo” exagerada.



Ainda sobre a recriação do período, causa estranheza que não haja utilização de músicas marcantes dos anos ‘50 (exceção feita ao tema de “Duas Contas”, apenas como música incidental). Por exemplo, ouvia-se muito samba-canção, ainda pouco a recente bossa-nova e se constituiu em enorme sucesso e escândalo junto às classes média e alta o aparecimento de Maysa ex-Matarazo, uma referência musical – e, no último caso, bem (melo)dramática - típica do momento psicossocial em que o filme se passa. Paradoxalmente e como uma verdadeira pá de cal, o filme se serve, de forma inteiramente deslocada, de uma gravação inexpressiva de “Apelo” para os créditos finais. A canção de Baden Powell e Vinicius não tem nada a ver com o filme nem com sua época, teve lançamento original em 1966 pelo Quarteto em Cy com o Tamba Trio e mereceu outra interpretação antológica (e melodramática, mas com pathos adequado) por Elizete Cardoso. Entretanto, o filme recorre a um dueto desvitalizado de Dick Farney e Claudete Soares que nem faz jus a estes mesmos cantores. Um último equívoco em uma sucessão de desacertos.



# PRIMO BASÍLIO

Brasil, 2007

Direção: DANIEL FILHO

Roteiro: EUCLYDES MARINHO, RAFAEL DRAGAUD e DANIEL FILHO

Fotografia: NONATO ESTRELA

Montagem: DIANA VASCONCELOS

Música: GUTO GRAÇA MELO

Direção de Arte: MARCOS FLAKSMAN

Figurinos: MARILIA CARNEIRO

Elenco: DÉBORA FALABELLA, FÁBIO ASSUNÇÃO, REYNALDO GIANECCHINI, GLÓRIA PIRES, GUILHERME FONTES, SIMONE SPOLADORE, ZEZEH BARBOSA, GRACINDO JUNIOR, LAURA CARDOSO.

Duração: 106 minutos

Site oficial: clique aqui

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