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O CINEMA POLÍTICO E EXISTENCIAL DE KIESLOWSKI

28.09.2020
Por Daniel Schenker
Plataformas digitais oferecem oportunidade de conhecer ou revisitar um diretor que conjugou de maneira singular o cotidiano e o sublime

O circuito brasileiro foi agitado pelo contato com algumas cinematografias ao longo da década de 1990. Vale mencionar a produção chinesa – a partir de “Amor e sedução” (1990) e “Lanternas vermelhas” (1991), de Zhang Yimou – e a iraniana – capitaneada por “O balão branco” (1995), de Jafar Panahi. Brilharam com a mesma força os filmes do polonês Kryzsztof Kieslowski, diretor que morreu precocemente em 1996, aos 54 anos: dois exemplares do Decálogo – “Não amarás” (1988) e “Não matarás” (1988) –, a Trilogia das Cores – “A liberdade é azul” (1993), “A igualdade é branca” (1993) e “A fraternidade é vermelha” (1994) – e “A dupla vida de Véronique” (1991). Outra produção do cineasta, “Amador” (1979), foi exibida com mais discrição. Nesse momento, a Imovision disponibiliza em diversas plataformas – Now, Vivo Play e Apple TV App/iTunes, Google Play, Youtube Films, Apple TV App/iTunes – esses filmes e mais três, menos conhecidos, do início da carreira: “A cicatriz” (1976), “Sem fim” (1985) e “Sorte cega” (1987). A seleção também pode ser conferida nas salas do circuito Estação Botafogo.

Os quatro primeiros filmes se mostram mais frontalmente políticos (não por acaso, o cineasta enfrentou problemas com a censura), ao passo que os de maior repercussão, a partir dos trabalhos norteados pelo Decálogo, se revelam mais intimistas, mais focados nas jornadas de personagens, às vezes colocados diante de situações extremadas. Em “A cicatriz”, Bednarz (Franciszek Pieczka) é incumbido de retornar ao interior da Polônia para instalar uma fábrica, o que implica em impacto ambiental, a começar pela derrubada de árvores. Ele se depara com a resistência da esposa (Halina Winiarska) e com a oposição da população local. Kieslowski entrelaça questões morais, referentes ao mundo externo, com a esfera pessoal, familiar, de Bednarz, atravessada por conflitos.

O debate ético também se impõe em “Amador”, filme centrado em Filip (Jerzy Stuhr), fascinado com a câmera que, de início, maneja para reter os primeiros momentos da filha recém-nascida. Estimulado a filmar o cotidiano da fábrica onde trabalha, ele logo descobre que nem tudo pode ser registrado. Mas não esmorece. Segue em frente e conquista elogios ao dar vazão a autoria na realização de filmes sociais. A câmera simboliza para ele o descortinar de um novo horizonte, mais atraente que o dia a dia doméstico, do qual se afasta cada vez mais. Obcecado pela câmera, Filip demora a perceber a importância de direcioná-la para si. Kieslowski insere constatações não propriamente originais, mas oportunas, como a do cinema como arte que eterniza as imagens daqueles que morreram. O elo entre o coletivo e o individual desponta ainda na referência ao cinema humanista de Ken Loach, que vem à tona na citação a um dos seus filmes, “Kes” (1969).

O painel político surge embutido, em “Sem fim”, primeira produção realizada em parceria com o roteirista Kryzsztof Piesiewicz, ambientada no período em que a Polônia se encontrava sob a lei marcial. Kieslowski coloca o espectador diante da via-crúcis da tradutora Ulla (Grazyna Szapolowska), esposa de um advogado, Antek (Jerzy Radziwilowicz), que morreu, deixando um caso em aberto, do operário Darek (Artur Barcis), que passa a ser conduzido por um advogado mais velho, Labrador (Aleksander Bardini). Kieslowski prioriza a crescente desestabilização de Ulla, que continua “vendo” Antek e tenta estabelecer “contato” com ele. Já em “Sorte cega”, o cineasta mostra diferentes possibilidades de desdobramento no percurso de Witek (Boguslaw Linda), que não mede esforços para embarcar num trem em movimento rumo à Varsóvia. O diretor apresenta desenlaces distintos para essa situação-base, que suscitam posicionamentos diversos no que diz respeito ao comprometimento ideológico, incluindo certa tendência à alienação no trecho final.

À medida que o tempo avança, Kieslowski abre espaço para abordar os personagens a partir da perspectiva existencial, valorizando seus estados de alma. Seus filmes se tornam menos áridos, o que provavelmente favorece o alcance internacional que obtêm. Essa transição pode ser percebida no Decálogo. Em “Não amarás”, Tomek (Olaf Lubaszenko), um rapaz solitário, se apaixona pela vizinha, Magda (Szapolowska), a quem secretamente observa pela janela. O ponto de partida evoca, ao longe, “Janela indiscreta”, de Alfred Hitchcock, mas Kieslowski não está interessado em apresentar uma trama. Realça, isto sim, a natureza do amor que ele sente, algo puro que a sexualização desvirtua. As passagens que marcam a integração afetiva entre Tomek e a mãe do amigo (Stefania Iwinska), com quem mora, são tocantes.

Em “Não matarás”, o cineasta mostra trajetórias paralelas – de Jacek (Miroslaw Baka), um rapaz que vaga pela cidade aparentemente tomado por um ódio retesado, de Taksówkarz (Jan Tesarz), um motorista de taxi que realiza atos perversos ao longo do dia, e de Piotr (Krzysztof Globisz), um promissor advogado em início de carreira – que, em dado instante, se juntam. Um assassinato brutal, exposto com crueza de detalhes, irrompe na tela. Kieslowski faz um corte seco, abrupto, do assassinato para a resolução do julgamento do assassino. O resultado é bastante incômodo, mais ainda pela inevitável oposição entre as atitudes condenáveis do assassinado e a humanização do assassino nos últimos minutos.

O perfil sócio-econômico dos personagens segue sendo retratado, mas em plano secundário. A dissecação do indivíduo ganha força como em “A dupla vida de Véronique”, que parte de uma percepção espiritual. A polonesa Weronika e a francesa Véronique têm exatamente a mesma fisionomia e, apesar de não se conhecerem, partilham da sensação de não estarem sozinhas no mundo. O que acontece com uma reverbera na outra. Kieslowski destaca o impalpável por meio da dificuldade de ambas de explicarem aquilo que sentem. Desse filme em diante, o diretor começa a trabalhar com atrizes renomadas. Irene Jacob interpreta as duas personagens espelhadas e retoma a parceria com Kieslowski em “A fraternidade é vermelha”, terceira parte da Trilogia das Cores, em que contracena com Jean-Louis Trintignant. As outras duas produções da Trilogia também trazem profissionais consagradas à frente do elenco – Juliette Binoche em “A liberdade é azul” e Julie Delpy em “A igualdade é branca”.

Se as personagens de “A dupla vida de Véronique” sentem uma conexão misteriosa, que, em algum grau, suaviza a solidão, a Julie (Binoche) de “A liberdade é azul” é atropelada por uma tragédia logo nos primeiros minutos. Parece se tornar avulsa no mundo, mas a solidão não irrompe de forma radical. Presenças despontam no seu cotidiano. Confrontada com perdas lancinantes, ela realiza uma ruptura em relação ao modo de vida anterior. Kieslowski potencializa o sofrimento dela, menos asfixiada pela perda, porém, que a Ulla de “Sem fim”.

Em “A igualdade é branca”, o cineasta se aproxima um pouco de “Não amarás”: nesse filme, o sexo volta a se constituir como elemento de crise e há um casal, Karol (Zbigniew Zamachowski, ótimo) e Dominique (Delpy), em desencontro. Mas o tom é completamente diferente: no filme anterior Kieslowski investe na densidade dramática, enquanto que nesse tangencia o humor por meio de uma história marcada por reviravoltas inesperadas. O inexplicável, contudo, permanece. Kieslowski normalmente não se preocupa em justificar aquilo que os personagens dizem sentir, não insere flashbacks esclarecedores. Valoriza o enigmático, como no instante em que Mikolaj (Janusz Gajo) revela que deseja morrer para sofrer menos.

O oculto também se insinua em “A fraternidade é vermelha”, filme centrado no elo que se firma entre uma modelo, Valentine (Jacob), e um juiz aposentado, Joseph (Trintignant), mais que desiludido com a humanidade. Aos poucos, Kieslowski apresenta as características do atribulado relacionamento no qual Valentine se encontra envolvida e as razões que levaram Joseph a se blindar emocionalmente, evitando qualquer contato, e a repensar as escolhas profissionais que fez no passado. Personagens que não aparecem na tela adquirem relevância no relato dos Personagens que não aparecem na tela adquirem relevância no relato dos protagonistas.

Kieslowski destaca o não-dito e o não-visto, o que não significa que suas imagens não sejam expressivas, considerando o modo como as cores da bandeira francesa surgem inseridas nos três filmes. Elementos em comum atravessam as produções da trilogia, como as cenas de pessoas idosas tentando jogar garrafas de vidro dentro da lata de lixo reciclável. E as breves aparições de personagens de determinado filme em outro da trilogia sugerem que as histórias acontecem concomitantemente.

É uma oportunidade conhecer ou revisitar o cinema de Kieslowski, diretor que conjugou de maneira singular o cotidiano e o sublime, dimensão simbolizada pela música clássica, tão frequente em seus filmes.

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