Convidados


VENTO SECO

De: DANIEL NOLASCO
Com: RAFAEL TEÓPHILO, LEANDRO FARIA LELO, RENATA CARVALHO
03.10.2020
Por Bruno Ghetti
Curitiba celebra a obra de Daniel Nolasco, que, sem medo de ser amado ou odiado, apresenta um cinema centrado no sexo gay fetichista

O goiano Daniel Nolasco já tem uma sólida carreira em curtas, mas mesmo que tivesse filmado apenas "Vento Seco", sua estreia em longas de ficção, já faria jus à homenagem que recebe neste ano no festival Olhar de Cinema, de Curitiba. É que o filme traz um olhar tão ousado e novo (para os parâmetros nacionais) sobre a questão da representação LGBT nas telas que é um alívio ver alguém filmando de forma tão desconectada das amarras que o zeitgeist atual tem imposto nas representações positivas sobre a homossexualidade.

Em geral, essas regras têm resultado em filmes em que a experiência queer surge ou de maneira por demais pasteurizada, higiênica – quase sacralizada – ou então pelo viés do "filme-textão", em que o "lacre" dá a impressão de ser por vezes mais importante do que a questão LGBT em si (esta segunda vertente, aliás, parece peculiarmente sedutora aos curta-metragistas brasileiros queer em atividade hoje).

Não é que "Vento Seco" não proponha uma representação "positiva" do mundo gay, mas isso parece vir de uma maneira inusitadamente orgânica, quase não procurada pelo diretor. É como se fosse um efeito colateral das intenções de base da câmera de Nolasco, que quer justamente mostrar o desejo (homo)erótico como algo natural – que, se não desumaniza ninguém, tampouco santifica.

No caso específico do filme, trata-se de um desejo de caráter abertamente fetichista, afeito a práticas "sujas" e degradantes aos olhos de muitas pessoas (gays, inclusive), mas que, no longa, é mostrado sem medo de soar impuro, condenável ou mesmo "ridículo". É uma sexualidade eminentemente gay e massivamente clichê: o fetiche por roupas de couro, a prática do sadomasoquismo, o tesão por corpos peludos e musculosos, a preferência por homens não afeminados – Nolasco tem mais compromisso com a fidelidade às pulsões das personagens do que com fazer um filme de viés inclusivo inócuo e de fachada. Seu filme é tudo o que as vertentes assimilacionistas da comunidade LGBT mais abominam.

É sobre essa sexualidade não normativa que o filme fala, então o diretor não falsifica nem suaviza a especificidade desse tipo de desejo em nome de tornar seus personagens mais "aceitáveis" por outros grupos sociais: que se danem. Apesar da posição política expressa do diretor ao fazer um filme com elenco majoritariamente LGBT (entre os quais, três trans), o longa não tem aquele tipo de discurso de muitos filmes que insistem em uma certa queer-ostentação para a câmera, que surge muitas vezes antes como uma vingança birrenta contra o macho-hetero-explorador do que propriamente como a afirmação de um modo de vida que merece ser respeitado. "Vento Seco" também ostenta homossexualidade, suada e exalante de odores, mas o faz sobretudo como exposição de uma forma de viver – e na qual não se omite o papel fundamental da inclinação sexual e suas implicações no dia a dia das pessoas.

O diferencial do filme de Nolasco – e que já surgia em seu longa anterior, o documentário "Mr. Leather" (2019), sobre fetichistas por couro de São Paulo – é que, mesmo mostrando uma porção de clichês, reiterando várias ideias do que se espera ver do comportamento "degradante" desse tipo de homossexual, é possível, com o tempo, perceber ali a humanidade dos personagens – e também desfazer uma série de lugares-comuns totalmente preconceituosos. Não é preciso higienizar práticas, falsear comportamentos ou sequer bater na tecla de um discurso autobajulatório enquanto motor de empoderamento: apresentando os personagens exatamente como são, representados com o respeito que lhes é devido, Nolasco consegue mostrar que são pessoas comuns, como quaisquer outras, com a única diferença de terem um imaginário e fantasias povoados por práticas socialmente estigmatizadas. "Vento Seco", de forma quase milagrosa, não precisa negar o que é próprio do universo LGBT para torná-lo simpático aos olhos do público.

Quer dizer... ao menos do público que esteja propício a adentrar o mundo fantasista proposto por Nolasco. Evidentemente, é um filme de alto risco. É a história de Sandro (Leandro Faria Lelo), funcionário de uma fábrica de fertilizantes no interior de Goiás, que se envolve sexual e afetivamente com um colega de trabalho e tem devaneios fetichistas por outro.

Em grande parte da duração, o longa se dedica a mostrar corpos masculinos em close ou atos sexuais. Há saliva, urina e esperma em fartura, apresentadas em diversas cenas gráficas de sexo sado-masô, felações não encenadas e uso de apetrechos da prática leather. Tudo em uma ambientação que oscila entre o realismo (de um ambiente operário) e o artificial ao extremo; além de corpos apolíneos, há luzes de néon no vestiário masculino, e quando o protagonista dá vazão a seus desejos no meio do mato, a fotografia muda de filtro para tons mais intensos e extravagantes, que tanto reforçam a carga sexual das imagens quanto as tornam divertidamente camp. Nolasco tem o dom para o onírico e para o naturalista, fazendo um requintado amálgama entre o artifício e a crueza; sabe explorar muito bem esse seu duplo talento.

A inclusão de sexo explícito no cinema não-pornô costuma gerar repulsa em muita gente; se há prática sexual fetichista, então, pode causar simplesmente horror. Mas quem não desiste do filme logo no primeiro close em um pênis ereto, verá mais adiante que essas cenas "apelativas" são perfeitamente justificáveis. Pelo simples fato de serem a própria razão de existir do filme, que é uma sucessão de fantasias de um homem socialmente reprimido. O sexo excessivamente mostrado, performado, faz todo sentido, da mesma forma como eram fundamentais as cenas explícitas de um filme como "Um Estranho no Lago" (2013), de Alain Guiraudie, sobre os rituais e jogos de flerte específicos do ambiente de "pegação" homossexual. Afinal: como fazer um filme sobre um imaginário pautado em fetiches sem mostrar uma profusão deles na tela?

Mas o filme de Nolasco não é "pesado" como pode parecer. O drama de uma existência homossexual nunca é ignorado – há menções a um assassinato homofóbico, há medo de assumir um romance gay, há a possibilidade da violência não fetichizada sempre à espreita, naquela cidade de interior. Mas o que predomina é a ternura entre os personagens, e ninguém parece minimante preocupado com a sexualidade alheia – por vezes, o ambiente operário vive uma harmonia que beira a idealização. O que, para além de ser uma escolha política, está inclusive em consonância com o aspecto fantasioso, até lúdico do filme (vide a festa de aniversário, com temática de super-heróis).

E há espaço para o humor. O cineasta já havia misturado libido e comicidade em uma espécie de trilogia de curtas fetichistas com nomes de planetas: "Urano" (2013), "Plutão" (2015) – o melhor deles – e "Netuno" (2017). Muitas das ideias visuais dessas obras, que vieram de referências variadas, do pornô gay setentista ao "Querelle" de Fassbinder, foram reaproveitadas e aperfeiçoadas em "Vento Seco". O filme traz, ainda, uma cena hilária de um jogo de futebol hiper-sensualizado, em que as jogadas (ou mesmo a bola) praticamente não aparecem. O foco da câmera são os peitorais, coxas e contornos de falos das sungas coladas ao corpo – o que, para parte expressiva dos gays, sempre foi o único real atrativo em uma partida desse esporte de "machões".

A presença de mulheres no longa não chega a ser ínfima, mas é notório o desinteresse da câmera de Nolasco pelo feminino – uma das únicas garotas com algum destaque (Larissa Sisterolli, que vive a irmã do objeto de desejo de Sandro) tem uma cena dramática que poderia ser promissora, em uma conversa noturna com o protagonista. Mas Nolasco aniquila qualquer possibilidade dramática em nome da estetização: ela aparece apenas ao longe, de costas, e com a imagem escurecida. Mel Gonçalves (ex-vocalista da Banda Uó) tem um pouco mais de sorte, com duas cenas mais destacadas, mas tampouco ela consegue deter a atenção da câmera por muito tempo; é um filme claramente obcecado pelo masculino.

Há, no entanto, a forte presença de Renata Carvalho (famosa no teatro, por interpretar um Cristo transgênero em "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu"), no papel de Paula, líder sindical e melhor amiga de Sandro. Seu físico esguio, pontiagudo, tem algo de fálico (será por isso que ela ganha mais atenção da câmera que as demais atrizes?), mas o foco sobre ela é diferente de todo o resto do filme: é mostrada de forma não sexualizada, mesmo nas duas únicas cenas que dariam margem para isso: quando aparece rapidamente de biquini, em uma piscina, ou quando surge vestida de Mulher Maravilha, em uma festa.

Paula é uma presença sexualmente neutra (embora não de todo assexuada); nos termos do filme, pouco importa se a personagem é uma mulher cis ou uma trans, e de fato a atriz ali nunca se parece exatamente uma coisa nem outra. Ela sugere, antes, uma espécie de entidade – uma figura sem sexo, mas geradora de energia positiva e afetuosa ao seu redor, apesar de firme em suas falas e seus posicionamentos. Quando ela tem sua única grande cena, já perto do fim, seu rosto é tão expressivo que não há no filme inteiro alguma imagem de nu que cause mais impacto do que ela. Com cabelos presos, sua figura descarnada e aquilina sugere a Maria Bethânia da época de "Carcará"; ambas têm a mesma altivez, o mesmo drama na face.

Mas o longa tem alguns problemas na composição de subtramas e de alguns personagens – nunca fica muito claro, por exemplo, o significado de Maicon (Raphael Theophilo), para além de ser um mero objeto de desejo carnal de Sandro (e da lente de Nolasco). Em seu aspecto de macho estilo Tom of Finland, ele pode até ter uma fisicalidade bastante sólida diante da câmera, mas o personagem é vaporoso enquanto conceito. E as cenas envolvendo a morte de um dos operários, Cézar (interpretado pelo ator trans Leo Moreira Sá) também são um bocado imprecisas. Mas, ao menos, servem de gatilho para um dos trechos mais belos do longa: um abraço entre os três protagonistas, que os levará ao formidável desfecho de "Vento Seco", no chão poeirento do cerrado: o auge deste delírio poético homoerótico em forma de filme.

Há ainda outra sequência de grande vigor, mais arriscada: em um de seus devaneios sexuais, Sandro vai parar em um local em ruínas, onde funciona um clube sadomasoquista kitsch (o local se chama Al Parker, nome famoso do pornô gay americano dos anos 70). É como se ele estivesse chegando a um Club Silencio em pleno Centro-Oeste. Assiste a uma cena de sexo oral altamente performática, cujo ápice é a ejaculação no olho do personagem de joelhos no palco. Aquele rosto queer borrado com uma espessa lágrima de esperma, de repente, se torna uma metáfora do sofrimento dos LGBT ao longo de milênios de perseguição. Mas Sandro se aproxima vorazmente daquela face e, em um gesto mais simbólico que propriamente fetichista, lambe o fluido viscoso com tesão; o que já foi sofrimento, agora é prazer – a cena funciona em um nível alegórico que suplanta qualquer possibilidade de asco físico.

Finalmente, resta ressaltar uma cena pós-coito, em que Sandro diz ao parceiro que uma fobia de alguém se resolve quando a pessoa se coloca frontalmente diante daquilo que causa o pavor. É óbvio que ninguém é obrigado a gostar de sexo "sujo" e menos ainda de praticá-lo, mas talvez os homofóbicos perdessem sua fobia de quem faz sexo não normativo se assistissem a "Vento Seco" do início ao fim. Entenderiam que, onde pensam haver monstros depravados, há apenas pessoas com fantasias diferentes das delas próprias. Ou (vai saber?), talvez, não tão diferentes assim.


Bruno Ghetti é carioca, jornalista e crítico de cinema. Membro da Abraccine, graduado pela UFRJ e com Master em Estudos Cinematográficos pela Université Paris 7 (Paris Diderot). Já passou pelas redações da "Folha de S.Paulo", "Revista de Cinema", "Agora" e jornal "Metro". Foi colunista de cinema do site da MTV Brasil e escreve críticas para a "Folha de S.Paulo". Cobre os festivais de Berlim, Cannes e Veneza para publicações diversas.

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