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BELA VINGANÇA

De: EMERALD FENNELL
Com: CAREY MULLIGAN, BO BURNHAM, ALISON BRIE
26.04.2021
Por Amanda Luvizotto
Quando a dor se sobrepõe à autopreservação

O longa de estreia da inglesa Emerald Fennell, Doce vingança, protagonizado por Carey Mulligan, tem provocado os mais diversos debates. Rosto conhecido por interpretar Camilla Parker Bowles na série televisiva The Crown da Netflix, Fennell é responsável por roteiro e direção desta trama, que conta a história de Cassandra, uma jovem de 30 anos cuja vida estagnou após o falecimento de sua melhor amiga, Nina, vítima de abuso sexual no passado. O título original (Promising Young Woman) é uma referência ao caso americano People vs. Turner, em que um acusado de agressões sexuais a mulheres inconscientes era frequentemente chamado pela defesa de “um jovem promissor”. É uma pena que se tenha perdido tal referência no título em português, pois ela tem muito a dizer a respeito da narrativa do filme.

Enquanto parte do público defende a produção, indicada ao Oscar deste ano em cinco categorias, tendo vencido a de melhor roteiro original, outros a rejeitam completamente. Fennell vem sendo criticada, sofrendo acusações de objetificação feminina e de usar o estupro como recurso narrativo em um enredo classificado como rape revenge, ou seja, em que a violência sexual cometida contra a protagonista é o motor de sua jornada, mesmo que o abuso em questão não tenha ocorrido diretamente com Cassie, a personagem principal. Tudo isso imerso em uma estética “vanilla pop” – como foi classificada por Maitê Mendonça em seu texto para o site Final Girl: figurino e fotografia em tons pastéis e trilha sonora pop adolescente. Mas a obra pode ser reduzida a isso?

Em “Prazer visual e cinema narrativo”, a crítica e pensadora inglesa Laura Mulvey aborda como “o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou a forma do cinema”, em que o espectador olha para o masculino em tela de forma ativa e para o feminino passivamente, como um fetiche a ser contemplado. Esse olhar escopofílico e voyeurista torna-se parte da experiência tradicional cinematográfica, em que a imagem da mulher é continuamente usada com esse fim. Em Bela vingança, a diretora desconstrói tal lógica em diversos momentos, como nos planos plano iniciais, com homens em imagens feitas usualmente com mulheres, ou na quebra da quarta parede durante a primeira “emboscada” de Cassie: ao olhar para a câmera, ela torna o espectador um cúmplice passivo de seu ato (uma cena similar à sequência inicial de Miss Violence, longa do grego Alexandros Avranas).

A partir deste ponto, temos alguns spoilers da trama

Há também uma clara preocupação em não alimentar o voyeurismo masculino: o espectador nunca é apresentado à figura de Nina ou ao ato cometido contra ela. O áudio do abuso é mostrado somente até o ponto essencial para a narrativa. A figura feminina não é explorada em cena sem um propósito, sendo o terceiro ato um exemplo disso. Fennell usa a objetificação em benefício próprio ao executar a vingança final de Cassie: apelando para uma caracterização fetichizada, que facilita a interação da personagem com o abusador de Nina, a diretora faz uma crítica implícita ao olhar e postura patriarcais.

No que diz respeito à categorização do filme como rape revenge, é necessário analisar o contexto no qual o abuso acontece no filme. Nos Estados Unidos, país onde se passa o longa, é assustador o número de casos de violência sexual que ocorrem em ambientes escolares com vítimas alcoolizadas e/ou inconscientes. O documentário de 2015 The Hunting Ground aborda o tema, mostrando o desenrolar após o crime, que na maioria das vezes termina com o abafamento do caso e uma vítima traumatizada. O ocorrido em Bela vingança segue esse padrão e, tal como os casos reais, percorre um ciclo: a vítima é culpabilizada e desacreditada; a universidade não presta assistência e abafa o caso, pois não quer seu nome vinculado ao acontecimento; o advogado do abusador, ao mesmo tempo que o infantiliza, descredibiliza a vítima usando-se de meios torpes para tal; e a omissão dos amigos, que sabem ou presenciaram o crime, mas o acobertam.

Na trama, o abuso não ocorre com Cassie, e sim com sua melhor amiga. Decisão inteligente da parte de Fennell, pois, além de abordar a abrangência do trauma que uma violência sexual provoca, desdobra a premissa inicial do rape revenge, já que o estupro não é sofrido pela protagonista, tirando-o do lugar comum. Em paralelo, ela agrega à trama a culpabilização feminina, tão presente em nossa sociedade. Cassie não quer apenas justiça, mas também carrega um fardo imensurável por não ter estado com Nina no dia do abuso, de modo a impedir que o episódio acontecesse. Ou seja, uma mulher sente-se culpada por não evitar o assédio cometido a outra, enquanto o abusador não carrega nenhum pesar a respeito de seu ato. Importante frisar: a palavra “estupro” não é dita uma única vez durante o filme, mas todos, incluindo o espectador, sabem do que se trata.

O fato de a violência não acontecer diretamente com Cassie justifica que sua indignação e dor sejam maiores que seu instinto de autopreservação. Para a personagem, não é possível seguir em frente, pois suas lembranças estão intrinsecamente conectadas a Nina, logo ignorá-las é de certa forma negligenciar a si própria. No desfecho da trama, Cassie decide confrontar o abusador, marcando-o fisicamente, tal qual uma mulher se sente marcada após ser violentada, e acaba assassinada. E mesmo com toda a estética meiga e pop, duas mulheres perderam suas vidas para que a justiça fosse feita. Em uma produção que mostra enorme cuidado ao escolher sua trilha sonora, o único som ouvido no momento da morte da protagonista são gritos femininos sufocados – por um homem abusador e agora assassino, mas também pela injustiça de um sistema que o beneficia.

Concluindo, é uma obra que sem dúvida atravessa a todos que lhe assistem, tornando impossível manter-se indiferente. Merecedora de sua vitória no Oscar, dialoga com questões levantadas pelo movimento Me Too e é uma bela estreia de Emerald Fennell.



* Amanda Luvizotto é Crítica de Cinema formada pela Academia Internacional de Cinema, Arquiteta pela PUC-RJ, estudiosa da representação feminina no cinema, faz parte do Coletivo @3locadas e do grupo Mulheres no Terror, e atualmente contribui para diversos veículos de cinema.



 

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Outros comentários
    5232
  • Catarina
    26.04.2021 às 15:05

    Escrita perfeita , limpa e muito bem desenvolvida! Parabéns pela crítica!
  • 5233
  • Maurício Bastos.
    26.04.2021 às 16:49

    Fiquem instigado a assistir o filme pela qualidade descritiva do testo e intrigado para saber como a trama aborda o estupro de uma mulher pela perspectiva de outra. Realmente o título em português "Bela Vingança" não remete ao que foi descrito no texto e deixa sim um ar de rape revenge.
  • 5234
  • Concy
    06.05.2021 às 20:32

    Saliento que a participação das ex-amigas da época da escola e a própria mãe da personagem Cassie, não concordam com sua posição nesse drama que custou a todas as mulheres a dor de serem taxadas de prostitutas ou mulheres disponíveis, crime inaceitável para mulheres que ousem não se renderem a essa prisão mental até os dias atuais. Somente o pai defende a filha, inclusive da própria mãe que critica a filha por não ser uma mulher modelo. Excelente filme.