Críticas


A PORTA AO LADO

De: DANIEL BRÜHL
Com: DANIEL BRÜHL, PETER KURTH, RIKE ECKERMANN
01.11.2021
Por Maria Caú
Autoficção, humor ácido e piadas internas berlinenses

Em Berlim, uma grande e fervilhante capital do século XXI, Daniel, renomado ator de cerca de 40 anos, rico, poliglota e bem-sucedido, vive um dia típico de sua vida de celebridade: acorda cedo, toma um café balanceado, ensaia um texto, conversa com a empregada hispânica, despede-se da esposa e dos filhos e segue em direção ao aeroporto para voar para Londres a fim de fazer um teste para o elenco de um blockbuster qualquer de super-heróis. Adiantado, ele resolve adentrar um bar das redondezas, do qual é cliente assíduo, e tomar um café com calma. Lá chegando, é confrontado com a presença de um de seus vizinhos, um homem que ele não reconhece, uma vez que evita cuidadosamente o contato com os outros moradores do seu prédio (que não é o prédio deles), inclusive utilizando um elevador particular nas entradas e saídas de sua cobertura. Esse estranho sujeito atrai Daniel para uma espécie de xadrez, ao alvejá-lo com uma série de informações da sua vida pessoal que ele mesmo desconhece, revelando paulatinamente seus objetivos escusos num debate enviesado, pleno de ressentimentos submersos.

Essa é, em linhas gerais, a premissa de A porta ao lado (no original, Nebenan), primeira aventura na direção do talentoso ator de ascendências espanhola e alemã (e uma pitada de Brasil, já que seu pai nasceu em São Paulo) Daniel Brühl. Com doses generosíssimas de auto-humor e despretensão (elementos muitas vezes em falta no cinema recente, em que a maior parte dos realizadores performa os gestos da solenidade criadora), o diretor constrói, em conjunto com o roteirista Daniel Kehlmann, uma autoficção nos moldes de Rock´n Roll, de Guillaume Canet. Ambos os filmes se esforçam para desconstruir humoristicamente as imagens públicas de seus atores-diretores. No filme francês de 2017, Canet brinca com sua imagem de bom moço e bom marido, criando uma persona imatura, em autodestruitiva crise de meia-idade e invejosa com relação à fama da esposa (Marion Cottilard, que também interpreta ela mesma). Aqui, Brühl, conhecido por ser um ator dramático sério e uma pessoa afável, inteligente e modesta, se retrata como um homem deslumbrado, egocêntrico, apegado à fama e sem a menor consciência de classe, alheio à vida daqueles ao seu redor (incluindo a empregada, o vizinho e a dona do bar que costuma frequentar e de quem não recorda nem mesmo o nome). O choque entre as duas imagens (o Daniel real e sua versão autoficcional) produz um efeito cômico de tom ácido, que também funciona como crítica à falta de autenticidade ontológica que acomete atores de cinematografias de língua não inglesa quando conseguem alçar a notoriedade internacional. São bastante bem-sucedidas nesse sentido as cenas em que Daniel tenta imbuir verdade em um diálogo completamente genérico de um filme de super-herói ou descobrir as motivações profundas de seu personagem (aparentemente sem grande importância na trama, a julgar pelo número de páginas que os produtores lhe enviaram ou pela forma como é tratado pela produção, incluindo o fato de que ainda não conseguiu assegurar o papel). Ao mesmo tempo, tal crítica ganha novos contornos ao apresentar o contraditório desejo de Daniel de se manter relevante no circuito do cinema de arte, sua vontade de requentar sua relação com o diretor que o descobriu e interpretar um dos maiores papéis para um ator “sério” alemão: Beethoven (e Daniel se mostra comprometido com o trabalho de pesquisa para descobrir a alma do personagem, mas não o suficiente para ler uma biografia sobre o compositor de cerca de 1200 páginas). Num contexto em que a grande maioria dos atores brancos heterossexuais se esforça para manter uma reputação que possa blindá-los em relação ao cancelamento público, o filme tem o frescor de tematizar a fama em todo o seu absurdo, com essa estranha honestidade que às vezes brota da farsa.

A história transcorre por apenas algumas horas, com o acirramento do embate entre Daniel e seu vizinho Bruno (um incrível Peter Kurth), um homem que vai se revelando um stalker à medida que o roteiro ganha inspiração nos filmes de espionagem, aludindo a Berlim muitas vezes retratada no cinema, uma cidade partida em que ainda ecoariam as práticas de controle e vigilância típicas do regime da Alemanha Oriental, naturalizadas no contexto do capitalismo hiperconectado, em que deixam de ser medidas puramente institucionais para estarem acessíveis ao cidadão dito comum. Nesse (novo) cenário, todos são suspeitos, incluindo a dona do café-bar, a esposa de Daniel, seu assistente e (por que não?) ele mesmo, todos unidos em sua tentativa de esconder seus segredos. Desse labirinto emergem citações a diversos dos filmes da carreira do Daniel ficcional, incluindo o que o revelou, em que ele interpretara um autista (uma possível alusão a O som das nuvens, primeiro filme de Brühl com o diretor Hans Weingartner, no qual ele interpreta um jovem esquizofrênico) e uma obra muito aplaudida passada na Alemanha Oriental, mas que Bruno considera historicamente incorreta e ofensiva por supostamente retratar os alemães desse regime como patéticos (aqui evoca-se o brilhante Adeus, Lênin!, de Wolfgang Becker, filme que alçou o ator ao estrelato mundial). Em meio a essas muitas citações detectáveis, permanece a sensação de que a narrativa trabalha com uma atmosfera muito berlinense, propositadamente lançando mão de detalhes que passarão despercebidos pelo espectador não familiarizado com esse ambiente (a crítica que aqui escreve incluída), pequenas piadas internas que certamente dão a esse público um molho mais especial. Ainda assim, e muito embora a narrativa tenha soluços de desenvolvimento (todas as viradas são previsíveis e a fórmula aos poucos cansa, com longos diálogos que soam por vezes um tanto repetitivos), o resultado final revela um diretor que é capaz de fundir a Berlim do cinemão hollywoodiano, a Berlim do cinema de arte e a sua Berlim particular, e não teme fazer um cinema que poderia ser considerado pouco ambicioso aos olhos dos seus fãs (diferentemente de sua versão ficcional, enamorada do sucesso). E é justamente esse o frescor da sua estreia na direção.

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