Críticas


SUPERIORA

De: ERIN VASSILOPOULOS
Com: ALESSANDRA MESA, ANI MESA, PICO ALEXANDER
02.11.2021
Por Luiz Baez
O patriarcado duplicado

A relação ambígua entre a imagem e seu duplo, diante do qual atuam mecanismos de identificação ou repulsa, é ao menos tão antiga quanto o Ocidente. Dentre estes mitos que ressoam em nossa cultura desde a Grécia Antiga, talvez o de Narciso ofereça o melhor exemplo: na conhecida história, o fascínio com o reflexo leva, em última instância, à própria morte, sintetizando assim a sedução e o perigo inerentes à imagem duplicada. Em outra e menos difundida versão, por sua vez, o rapaz não se apaixona por si mesmo, mas pela irmã gêmea – um desejo incestuoso que remete ao horror despertado por crianças nascidas em uma só gestação, muitas vezes sacrificadas ritualmente. O cinema (ele mesmo um duplo) soube aproveitar-se deste temor da não individuação para produzir alguns de seus mais assustadores planos: basta lembrar as meninas fantasmas de Kubrick ou a “mórbida semelhança” de Cronenberg. Já em Superiora (Superior, 2021), primeiro longa-metragem de Erin Vassilopoulos, o medo não se origina nas protagonistas quase indiscerníveis (distinguidas apenas pelo corte na testa, o tabagismo e as roupas mais despojadas de Marian), mas por uma operação de duplicação que diz respeito a seus maridos, cujos comportamentos espelham a sociedade patriarcal em que se inserem – uma cidade pacata nos Estados Unidos da segunda metade dos anos 1980, traduzida por uma fotografia em 16 mm repleta de “ruídos” analógicos e por tecnologias como as fitas cassete e os jogos arcade. Em vez de perpetuá-la, na verdade, a imagem refletida (o cinema) mantém viva a esperança de ruptura com a opressão, como bem indica a sequência final. 

Em termos narrativos, o tropo reproduzido por Vassilopoulos não poderia ser mais simples: tal qual em Cachos e tranças (Das doppelte Lottchen, 1949), romance de Erich Kästner incorporado pelo cinema em mais de uma oportunidade, as irmãs trocam de vida visando a alguns objetivos. De sua parte, Marian quer fugir da polícia e de Robert (Pico Alexander), homem que ela havia atropelado logo na cena inicial. A gêmea, Vivian, desconhece esse motivo, mas aceita o "jogo" por sentir-se sufocada na própria casa. À diferença da principal adaptação de Kästner – Operação cupido (Parent Trap, 1998) –, em que Lindsay Lohan interpreta as duas gêmeas, a escolha aparentemente trivial de duas atrizes (respectivamente, Alessandra e Ani Mesa) guarda significados mais profundos. Afinal, ainda que o espectador de fato veja duas mulheres, os homens ao seu redor (sejam eles empregadores ou parceiros românticos) falham em reconhecê-las. É como se elas fossem plenamente substituíveis na banalidade de seus afazeres domésticos ou subempregos, mas, além dessa subjetivação interrompida (restando-lhes um lugar objetificado), há outra operação de duplicação, cuja evidência mais clara se manifesta quando, em um delírio, Marian confunde o marido da irmã, Michael (Jake Hoffman), com seu perseguidor. Se, à primeira vista, um trabalhador e um agressor nada compartilham, a revelação gradual de microviolências cotidianas desvela o machismo onipresente. De um lado, a hostilidade de Robert dispensa maiores comprovações, já que se mostra sem pudor em sangue, socos e vícios. De outro, o aspecto inofensivo de Michael não tarda a se desconstruir: o mesmo homem que lê guias de bolso sobre moedas, coleciona latas de tabaco (mas não fuma) e pede comida chinesa nunca ajuda nas tarefas domésticas, reclama da presença da cunhada, incentiva a esposa a largar a faculdade e insiste em uma gravidez a que Vivian não parece mais disposta – e, por isso, frustra sexualmente a parceira, obrigando-a a posições pouco prazerosas, além de acordá-la no meio da madrugada para medir a temperatura corporal. Deste modo, enquanto brinca com a duplicidade de suas protagonistas, Superiora duplica também o patriarcado: de que adianta trancar as portas se o perigo pode estar dentro de casa?

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