Críticas


O FESTIVAL DO AMOR

De: WOODY ALLEN
Com: WALLACE SHAWN, GINA GERSHON, LOUIS GARREL, ELENA ANAYA, SERGI LÓPEZ, CHRISTOPH WALTZ
26.12.2021
Por Maria Caú
Allen declara seu desejo de não abandonar o cinema com um filme tão adorável quanto cheio de defeitos

Nos últimos anos, Woody Allen quase se perdeu do (seu) cinema. Sofrendo um processo de cancelamento de grandes proporções, viu seu prestígio, antes inabalável mesmo diante de fracassos de bilheteria ou crítica, ir desvanecendo à medida que colaboradores, em especial atores, se declaravam arrependidos de terem trabalhado com ele. Nesse contexto, seu contrato com a Amazon, que lhe garantiria a produção de quatro longas-metragens, virou um imbróglio judicial e Um dia de chuva em Nova York, o primeiro dos quatro filmes previstos, teve sua distribuição comprometida no mundo inteiro – só foi lançado nos cinemas estadunidenses em outubro de 2020, quase um ano depois do Brasil (um fracasso de bilheteria, visto que os fãs cativos certamente já haviam assistido ao filme ilegalmente, acossados pela suspeita de que a obra jamais viesse a alcançar a sala escura).

Além disso, Allen também “perdeu” para a aposentadoria sua maior colaboradora: a genial Juliet Taylor, sua diretora de casting por décadas, responsável pelas inusitadas e em geral acertadíssimas escolhas de elenco das obras de Allen e que lhe apresentou nomes como Dianne Wiest (atriz que venceu duas estatuetas do Oscar sob a batuta do diretor). Allen é o primeiro a admitir que a colaboração dos dois ia muito além da escolha do elenco e que Taylor dava extensos pitacos nos roteiros, inclusive tendo sugerido que ele reescrevesse Meia-noite em Paris (2011) para tornar o protagonista mais velho e profissionalmente bem-sucedido, modificando o conflito central da trama substancialmente. A colaboração entre Allen e Taylor é mais um destes casos que sublinham as diversas autorias pouco exaltadas no universo de criação necessariamente coletiva que é o cinema tradicional. Não por acaso, desde Café Society (2016, último filme dessa belíssima parceria), os filmes de Allen sofrem com problemas de casting e um intenso retorno a temas e situações dramáticas já explorados antes com maior potência. Roda gigante (2017) e Um dia de chuva em Nova York são filmes derivativos, ainda que o primeiro tenha qualidades de realização evidentes. A sensação é de que o cineasta vem circunavegando sua própria obra. A diferença com Rifkin´s Festival (traduzido bisonhamente como O festival do amor) é que tal característica, que incomodava sobremaneira nos filmes anteriores, é aqui assumida e inteligentemente incorporada pela instância narrativa.

A história soa requentada: Mort Rifkin (Wallace Shawn), aspirante a romancista, frustrado com as poucas páginas que escreveu apenas para rasgar, viaja para o Festival de San Sebástian com sua mulher, Sue (Gina Gershon). Sue se dirige para o evento a trabalho, já que é assessora de imprensa e precisa cuidar do extenso cronograma de atividades de Philippe (Louis Garrel), um pernóstico cineasta em ascensão, considerado um gênio por público e crítica. Deixado de lado pela atarefada mulher, Mort caminha pela cidade como um flâneur, reencontrando amigos e refletindo sobre sua incapacidade de retomar seu romance. Nessas andanças, ele se vê preocupado com a saúde e decide ir a uma consulta médica, encantando-se pela doutora Jo Rojas (Elena Anaya, que colaborou com Almodóvar em Fale com ela e A pele que habito), que parece dividir com ele o amor pelo cinema europeu dos anos 1950 e 1960. Esse encantamento, aliado ao claro flerte entre Sue e Philippe, faz com que Mort volte suas atenções para a médica, retornando ao seu consultório com toda sorte de desculpas para vê-la.

Essa trama base é claramente uma releitura de temas e situações já vistos antes na obra do diretor; aqui e ali emerge a sensação de que algumas das piadas foram aproveitadas de uma cesta de cortes de roteiro de filmes anteriores. Mesmo a estrutura geral do filme guarda expressivas semelhanças com o brilhante Memórias. No filme de 1980, a jornada do protagonista Sandy Bates em um evento de cinema que apresentava uma retrospectiva da sua obra era costurada por suas lembranças reais, distorcidas pelo movimento do recordar ou francamente inventadas; aqui, a narrativa é inundada por releituras de obras-primas do início do cinema moderno, um absoluto deleite para o espectador versado nessa época gloriosa. São homenagens a cineastas como Fellini, Bergman, Godard, Truffaut e Buñuel, que ganham as tintas da comédia alleniana (num dos momentos altos, na recriação de Persona, temos as personagens dubladas em sueco). Esses trechos, belamente fotografados por Vittorio Storaro, valem por si sós a ida ao cinema e ganham uma significação múltipla. São em primeiro lugar o reencontro de Mort com sua vocação verdadeira; não a posição de grande romancista (ao lado de Joyce ou Dostoiévski), mas um trabalho do passado como professor de cinema, momento em que ele foi real e modestamente feliz. São também projeções da aura experimentada por aquele que caminha com atenção por um festival de cinema, esse espaço mágico em que o poder do ambiente fílmico se afirma e se renova. E, não menos importante, são a forma que Allen encontrou para resistir em tempos de injusto cancelamento, para repetir para si mesmo (e para nós) as razões que o levam a fazer cinema e sublinhar o tipo de cinema que o emociona. O cinema que move o diretor não é o cinema político (e muitas vezes pretensioso) ligado a pautas contemporâneas da ordem do dia, representado por Philippe e sua empáfia de tentar resolver o conflito entre Israel e Palestina com um único filme, mas um cinema dedicado a falar de questões existenciais, dos problemas do amor e da dificuldade de se apaziguar com a morte.

O contexto de produção do filme, um momento de instabilidade na carreira de Allen, quando ele vê seu legado completamente ameaçado, mas ainda assim, escolhe continuar, é patente na narrativa, a começar pelas escolhas de elenco. Wallace Shawn, amigo do diretor e seu defensor, que já havia feito participações mais pontuais em diferentes fases da carreira do cineasta, em filmes como Manhattan (1979) e Melinda e Melinda (2204), ganha protagonismo, mas mesmo Douglas McGrath (roteirista com quem Allen escreveu sua última colaboração no cinema, Tiros na Broadway, de 1994) assume um papel de relativo destaque. Allen escolheu acercar-se dos seus e esse aspecto afetivo lubrifica uma narrativa engessada, que aqui e ali recorre aos mesmos clichês sobre a forma (supostamente intensa e experimental) como os espanhóis lidam com amor e sexualidade. O desfecho, algo tocante, fala das ilusões que cultivamos, as nocivas e as necessárias, e as muitas expectativas frustradas que acumulamos ao longo da vida, essa pesada bagagem. Todo o filme tem, assim, ares de confissão, e é natural que a narrativa se passe inteira numa sessão de análise, com os episódios sendo recontados para o analista nesse espaço seguro em que podemos elaborar sobre quem somos com alguma honestidade.

Allen já declarou muitas vezes que não se considera um grande diretor, mas se vê quase como um carpinteiro do cinema, sempre tentando atingir a obra-prima que projetou, mas não conseguiu realizar, sempre se frustrando e começando outra vez. Em O festival do amor, ele cita mais uma vez Camus, mais especificamente O mito de Sísifo, ensaio de filosofia em que o escritor argelino evoca a figura mitológica condenada a erguer com dificuldade uma pedra até o alto de uma montanha apenas para vê-la rolar para a posição inicial e ter que repetir a ação inútil por toda a eternidade. Camus traça um paralelo entre Sísifo e o homem comum, que sabe da realidade da morte a destruir toda a concretude dos seus planos, mas, ainda assim precisa viver, afirmando-se em revolta constante contra o seu destino. Ao fim do seu ensaio, Camus afirma: “É preciso imaginar Sísifo feliz”. Reencontrando-se com o (seu) cinema contra todas as possibilidades, Woody Allen é capaz de se imaginar feliz. E essa felicidade escapa pelas bordas de um filme imperfeito, mal alinhavado, vacilante. Um filme que declara o amor pelo cinema, um amor ingênuo e que conquista justamente por essa ingenuidade. O amor de um diretor que ousa dizer: farei cinema, farei cinema como puder, farei cinema até que a morte (seja ela Bengt Ekerot ou quem sabe Christoph Waltz) venha jogar xadrez comigo.

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Outros comentários
    5251
  • Douglas pizza
    22.12.2021 às 11:51

    Excelente