Críticas


NÃO OLHE PARA CIMA

De: ADAM MCKAY
Com: LEONARDO DICAPRIO, JENNIFER LAWRENCE, MERYL STREEP, JONAH HILL
27.12.2021
Por Marcelo Janot
Nos identificarmos ideologicamente com um filme e com seu tema dificulta que percebamos os muitos problemas que ele apresenta como cinema.

O Fla x Flu de opiniões acerca de “Não Olhe Para Cima”, mesmo dentro da bolha progressista, é compreensível e facilmente explicável. Ele é daqueles filmes que provocam uma sensação catártica no espectador por falarem justamente o que queremos gritar, desabafar, frente ao pesadelo que se instalou no Brasil há três anos. Ainda mais porque, embora claramente inspirado no governo trumpista, as semelhanças com os personagens bizarros da política tupiniquim são incríveis – tanto que imediatamente renderam uma porção de memes.

Mas nos identificarmos ideologicamente com um filme e com seu tema não faz dele necessariamente um bom filme – pelo contrário, dificulta que percebamos os muitos problemas que ele apresenta como cinema. Nos anos 60, Stanley Kubrick apresentou uma brilhante sátira da política americana durante a Guerra Fria em “Dr. Fantástico”, uma de suas obras-primas. Mais recentemente, a série da HBO “Years and Years” também mostrou, na forma de um assustador futuro distópico que parece tão presente, os riscos que representam políticos populistas de extrema direita.

Apesar de recheado de astros, “Não Olhe Para Cima” é pobre em termos de dramaturgia, com personagens mal construídos que parecem pertencer a filmes diferentes, o que faz com que alguns de seus intérpretes estejam fora do tom. O exemplo mais claro é o personagem de Mark Rylance, o bilionário das comunicações e financiador da campanha da presidente vivida por Meryl Streep. Por mais que a intenção seja reforçar o tom de sátira a todo instante, como paródia de magnatas tipo Jeff Bezos, Elon Musk e Zuckerberg, ele parece uma caricatura saída do Casseta e Planeta Urgente, mas sem a graça que tinham Bussunda e sua turma.

Jennifer Lawrence nunca decide se embarca num tom dramático de filme-denúncia ou se fica repetindo ad nauseam a piada do general que cobrou pelos snacks da Casa Branca. Há o caso de personagens que não servem para absolutamente nada, como o de Timothée Chalamet, e aqueles que soam como uma autoparódia, tipo a cantora Ariana Grande, que está ali justamente para se vender num merchandising de luxo – intermináveis minutos de um videoclipe inteiro de uma canção insuportável.

A crítica que o filme faz à influência das redes sociais junto à opinião pública e às engrenagens e relações de poder, revelando o despreparo de negacionistas que não se importam com vidas alheias, apenas com o resultado das próximas eleições, parece óbvia demais para quem convive com isso diariamente aqui no Brasil – mas é muito verdadeira.

Lembrei do pedido de Kubrick para o escritor Terry Southern, que escreveu o roteiro de “Dr. Fantástico” adaptando em tom farsesco um livro sério cheio de dados técnicos e científicos: “Quero que você crie os diálogos mais absurdos que possam sair da boca dos personagens”. O que em 1964 era visto como uma hilária paródia hoje virou nossa triste realidade. Os diálogos absurdos passaram a ser ditos de forma natural pelos eleitores de Trump e Bolsonaro. A burrice triunfou, e “Não Olhe Para Cima” nem precisa ser muito inteligente pra mostrar isso. Basta escancarar o que já está na superfície pra desopilar fígados tão combalidos pelo desânimo.

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