Críticas


CANNES 2022: “BOY FROM HEAVEN” E “HOLY SPIDER”

26.05.2022
Por Marcelo Janot
Filmes abordam as consequências nefastas da mistura entre religião e política em países islâmicos

Dois filmes presentes na competição em Cannes tratam de tema semelhante: as consequências nefastas da mistura entre religião e política em países islâmicos, no caso Egito (“Boy From Heaven”) e Irã (“Holy Spider”).

BOY FROM HEAVEN (foto) é dirigido pelo sueco de origem egípcia Tarik Saleh. Ele conta a história de Adam (Tawfeek Barhom), jovem que deixa seu pobre vilarejo de pescadores após receber uma bolsa de estudos para a mais conceituada universidade islâmica do país, a Al-Azhar, no Cairo. A escola é uma espécie de QG do Grande Imã, o líder sunita mais poderoso do país, que tem forte influência sobre a população e dentro da estrutura de governo, inclusive na criação de leis.

Sem saber, Adam se vê sendo usado numa conspiração política para tentar tirar do caminho os candidatos favoritos a novo Imã e colocar no cargo o preferido do presidente do país, para que a estrutura corrupta do Estado não seja atrapalhada pelo líder religioso. Em intenso ritmo de thriller de espionagem, o filme vai revelando a podridão das entranhas governamentais e judiciais, inclusive os métodos criminosos do serviço de inteligência do exército egípcio.

A situação de Adam vai se tornando cada vez mais dramática até o momento em que ele percebe o quanto a astúcia adquirida graças ao seu gosto pela leitura e pelo conhecimento podem ser a sua tábua de salvação – é a lição final que o filme deixa. As situações implausíveis no roteiro são compensadas pela narrativa envolvente e o bom elenco.


HOLY SPIDER também é um thriller de ritmo intenso e com inúmeras forçações de barra no roteiro. A curiosidade é que seu diretor é o badalado Ali Abassi, iraniano radicado na Dinamarca, que fez um dos melhores filmes da última década: “Border”, instigante metáfora, com elementos de fantasia, da situação dos imigrantes na Europa. Ou seja, a expectativa em torno do projeto seguinte de Abassi era grande e esperava-se algo mais criativo e ousado, com uma narrativa menos convencional.

O filme é baseado no episódio verídico de um serial killer que matou 16 prostitutas entre 2000 e 2001 na cidade sagrada de Mashhad, no Irã. Saeed (Mehdi Bajestani) era um pai de família que, motivado por convicções religiosas, queria “limpar” a cidade sagrada matando todas as prostitutas do local. O mistério que envolvia as mortes cometidas pelo assassino incógnito, conhecido como “Spider Killer”, ganhou as manchetes dos jornais do país, mas a polícia pouco fazia para tentar encontrá-lo.

Até que entra em cena uma jornalista de Teerã, Rahimi (Zar Amir Ebrahimi). Disposta a investigar as circunstâncias dos assassinatos, que obedecem ao mesmo ritual (as prostitutas são estranguladas com o hijab que vestem), ela vai arriscar a própria vida num método de jornalismo investigativo um tanto ousado.

O fato de termos uma mulher como protagonista permite ao diretor bater numa tecla bastante vista no cinema iraniano, a do preconceito e opressão contra a mulher naquela sociedade, mas com alguma originalidade pelo fato de ela ser uma jornalista. Ao mesmo tempo em que revela, sem arestas no que diz respeito à violência, os maus-tratos e as condições desumanas a que as prostitutas se submetem, Abassi vai mostrar do que o fundamentalismo religioso é capaz, pois Saeed não tem as características conhecidas de um psicopata – ele acredita estar fazendo um bem à nação ao mesmo tempo em quer “deixar um legado” após uma participação sem destaque na guerra Irã-Iraque.

O que é mais assustador em "Holy Spider", e cuja reflexão pode se estender a outros países de governos conservadores que utilizam a religião como instrumento político, é como a opinião pública se torna facilmente manipulável a ponto de endossar tamanha barbaridade. A luta de Rahimi é uma luta inglória que se estende a todos os humanistas nesses tempos nefastos de horizontes sombrios.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário