Compreende-se o desconforto de um cineasta quando acha que seu filme foi incompreendido. Mas quando o responsável por Tropa de Elite acusa de burrice os que criticaram seu filme, vendo nele uma - no mínimo - complacência com práticas e ideários de inclinações fascistas, cabe a questão se ele foi mal entendido ou se não soube se comunicar.
Centenas de filmes (e peças, e livros) já mostraram personagens eticamente questionáveis ou mesmo condenáveis sem nem ao menos sugerir indiferença contra tais condutas. Há muitas obras que condenam; e outras que apenas mostram determinadas situações e condutas sem pré-julgamentos, mas sem nenhuma tonalidade que possa ser entendida como de apoio às práticas mostradas.
Este terreno da "neutralidade" é extremamente delicado e exige muito talento narrativo do criador. Um filme que só passou há anos em festival de filmes era Taking Sides ou O Caso Furtwangler de Istvan Szabo: exemplar em deixar para o espectador tirar suas próprias impressões sobre um grande maestro que tocou Parabéns Pra Você em um aniversário de Hitler, mas que era, do ponto de vista artístico, ainda respeitado, fosse por um jovem miltar americano e judeu, fosse por uma moça alemã, filha de um militar morto pelo nazismo porque havia tentado matar Hitler; o julgamento moral se estendia também ao coronelzão americano (Harvey Keitel, em composição admirável) que se permitia julgar com facilitado moralismo ianque de ver o ser humano em preto e branco, sem nuances de cinza, sobre o que havia sido viver com o delírio nazista. Obra-prima, infelizmente inédita comercialmente por aqui. Quem tinha que take a side era o espectador, jamais induzido, e colocado em posição desconfortável de lidar com ângulos diversos e complexos de questões que desafiam esquemas simplistas ou maniqueistas.
Se Tropa de Elite pretendia apenas mostrar, é forçoso pensar se há mesmo tanta gente "burra" que não soube entendê-lo. Ou se, ao contrário do que ainda não tem sido quase questionado, o filme é que é infeliz no que queria mostrar ou demonstrar.
Em Dogville, a personagem principal interpretada por Nicole Kidman, ao se revelar uma falsa vítima, mostrava que na verdade não passava de uma masoquista, mas que também exibiria, mais cedo ou mais tarde, a polaridade "contrária", inerente ao sadismo vingativo que manifesta no final, mas desde que apoiada pela força das armas do mafioso papai a quem ela apenas parecia se opor, revelando-se, afinal, plenamente indentificada com ele e seus métodos.
A "parábola" se concluia com a idéia de que a humanidade não presta mesmo e dava a ´Grace´ o "direito" de (com a força de metralhadoras) decidir quem "merecia" morrer: eram os outros. Ela, não; nem seu papai nem seus capangas. Ora, a reação das platéias, aplaudindo Grace em antigos cinemas "de arte" (no Paissandu) como uma nova Charles Bronson de "Death Wish" com verniz "cult", mostrava que o filme - no mínimo - incitava a reação de vendetta mafiosa e fascista. Ou havia sido mal resolvido em suas intenções.
Já A Visita da Velha Senhora de Dürenmatt, peça bem anterior, mas com a qual Dogville tem analogias, não deixa nenhuma dúvida de que não é simpática (nem indiferente) à conduta da Velha Senhora que volta à cidade natal para uma vingança (com o poder do dinheiro); isto, sem nenhum discurso moralista, nem condenando a personagem explicitamente. Mas Durrenmatt era Durenmatt, e Lars Von Trier é Lars Von Trier...
A epígrafe de Tropa de Elite é explicitamente de um psicólogo behaviorista (comportamental é o nome da moda) que vê o ser humano e sua conduta como tão somente produto do meio, ignorando a complexidade de formação de cada caráter individual e socialmente. Se o "ambiente" cinematográfico que se instala nas salas de exibição de Dogville ou de Tropa de Elite proporciona manifestações pró-tortura ou de indiferença "justificada" para com execuções sumárias por parte da platéia, e se aceitarmos a epígrafe de Tropa, diríamos que o ambiente emocional que se cria na sala escura quando tais filmes são exibidos propicia revelar nos espectadores inclinações maniqueistas que apóiam a tortura como forma de combate de quem se que ver como sendo "do bem". O mal está "fora", nos outros.
O filme soa complacente com a prática de "corpo no chão" do BOPE e não dá conta de uma situação muito mais complexa, partindo, segundo os seus defensores, para uma atitude de "apenas mostrar a realidade" com "neutralidade" (existe?). Ou indiferença de quem não se compromete? Mas que estimula soluções "fáceis" que acabam sendo muito dificeis porque banalizam ainda mais a necessária problematização de um confuso quadro social de desigualdade, criminalidade, corrupção e práticas ilegais: da pirataria de filmes ao uso de substâncias proibidas (criminalizando o usuário - ainda que se concorde que estes ajam com irresponsabilidade - mas com um simplismo constrangedor). Dogville e Tropa de Elite são, cada qual em seu gênero e características formais, filmes fascistas - ou mal resolvidos em sua formulação, a ponto de dar tal impressão, mesmo que não tivessem tais intenções proselitistas em seus ideários.
PEDRO ROCHA é professor