Críticas


PALOMA

De: Marcelo Gomes
Com: Kika Sena, Ridson Reis, Samya De Lavor, Wescla Vasconcelos
17.10.2022
Por Maria Caú
A revolucionária ousadia de mostrar uma mulher trans que sonha, ama e é amada

Mais de uma década atrás, uma matéria de um jornal de Recife chamou a atenção do diretor pernambucano Marcelo Gomes. A reportagem falava de uma mulher transsexual do interior de Pernambuco, agricultora, que havia escandalizado uma pequena cidade por desejar se casar na igreja de véu e grinalda. A partir dessa premissa, constrói-se a trajetória de Paloma, uma heroína clássica, mulher pobre, forte e batalhadora que persegue com resiliência o sonho do casamento de contos de fada, ou, melhor dizendo, um “casamento de cinema”. E aqui há dois elementos que fazem com que o público se cative imediatamente com o sonho da protagonista que, do contrário, poderia soar ingênuo demais. Em primeiro lugar, na pele da estreante e maravilhosa Kika Sena, Paloma cativa e transmite em cada olhar o enorme significado desse rito para uma mulher trans, que nunca se sentiu autorizada a ter os mesmos desejos infantis de uma menina cis, talvez nem mesmo a performar essas fantasias pueris com bonecas (numa cena tocante do filme, Paloma usa as bonecas da filha para encenar o ritual de um casamento, dando à festa sua personalidade marcante, com toda sorte de convidados excêntricos). Outro fator determinante é a fotografia de Pierre de Kerchove, que decompõe os pequenos meandros cênicos de um casamento, numa série de planos detalhe muito bem pensados posicionados logo no início da narrativa, quando Paloma observa o matrimônio de uma noiva que ela, cabeleireira amadora, ajudou a arrumar. Aqui estão incluídos dois belíssimos quadros, um que mostra o movimento descendente do arroz que é atirado sobre os noivos, e um plano-chave, do rosto da protagonista semiencoberto pelo véu da noiva, cuja transparência deixa entrever sua expressão embevecida.

A partir desses ingredientes bem dosados, Paloma ganha a cumplicidade e a sincera torcida do espectador, que acompanha seus revezes e a extrema engenhosidade da moça, que lança mão de todos os recursos à sua disposição, incluindo uma carta ao papa, com o objetivo final de se tornar, em suas próprias palavras, “a mulher mais feliz do sertão”. Neste cenário, seguimos o cotidiano de Paloma, pontuado pelo relacionamento entre ela e Zé (Ridson Reis), em sequências que revelam um amor tranquilo, com o tesão, o carinho, o conforto e os pequenos conflitos de qualquer relacionamento. A naturalização do casal Zé-Paloma, reconhecido por todos os que estão à sua volta como companheiros, é um grande trunfo do filme. É revolucionário ver uma mulher trans ser desejada (há cenas de sexo muito bonitas), cuidada e amada ao longo de boa parte da narrativa. A amizade de Paloma com a ex-mulher, Maria – e é emblemático que essas duas relações amorosas significativas da vida da protagonista reflitam o casal fundamental para a igreja que rejeita seu sonho, José e Maria – é outro enorme acerto do filme, com as interações entre as duas sendo comoventes, numa união inesperada em torno da filha, a qual ambas se mostram igualmente dedicadas.

De fato, Marcelo Gomes joga por diversas vezes com uma inteligente e bem plantada inversão de expectativas, aludindo para o fato de que o que se espera ver de narrativas centradas na vivência trans é, ainda, uma reiterada expressão da brutalidade de que este grupo é vítima (cabe lembrar que a expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de míseros 35 anos, menos da metade daquela que se refere à população geral). Assim, quando Paloma encontra acolhimento, em lugar de rejeição, o alívio do espectador vai ao encontro de uma justa e necessária reflexão (nos penitenciamos por já imaginar Paloma açoitada, antevendo para ela um destino muito pior do que o que ela vai, com afinco e perseverança e contra as estatísticas, tentar traçar para si). Afinal, Paloma é uma mulher que ousa; ousa ser feliz e ousa expressar sua felicidade através de um dos ritos mais tradicionais e socialmente demarcados para isso: a cerimônia de um casamento.

Ao mesmo tempo, o diretor é hábil em construir um clima de suspense que parece refletir a tensão da existência trans no mundo, em que há sempre a possibilidade de uma abrupta explosão de violência. O bom roteiro também não cede à tentação de fazer da cândida Paloma uma mulher perfeita, aos moldes das heroínas dos contos de fada, dando a ela algumas atitudes que a afastam do ideal da noiva virginal e abnegada (de fato, Paloma está sempre se afirmando frente a Zé, que não nutre o mesmo anseio pela cerimônia religiosa do casamento). Paloma quer se casar na igreja, não ser canonizada, afinal.

Os diálogos são outro ponto alto do filme, destilando realismo e humor e sublinhando um notável trabalho de preparação de elenco, evidente também nas muitas interações entre a protagonista e sua pequena filha, que rouba a cena com uma espontaneidade vibrante. Próximo ao desfecho, o filme acaba incorporando um episódio muito violento, talvez fazendo uma concessão a uma ideia de realismo que pouco acrescenta à trajetória da protagonista, a não ser no que diz respeito a ressaltar a rede de apoio que ela conseguiu construir apesar das adversidades, mas que já estava bastante presente no desenvolvimento. Ainda assim, o fato de que Paloma jamais esmorece, de que o espectador nunca chega a vê-la inteiramente alquebrada, é uma bem-vinda audácia da narrativa.

O filme foi triplamente laureado neste Festival do Rio. Venceu os prêmios de melhor longa-metragem de ficção da Première Brasil e melhor atriz para Kika Sena. Também levou o Prêmio Félix (dedicado a filmes de temática LGBTQIA+) de melhor filme brasileiro. Nos últimos tempos, afeto se tornou uma palavra quase proscrita da crítica de cinema nacional, com muitos leitores acusando críticos de usarem o termo para se referirem a filmes bem-intencionados com evidentes falhas formais. Pois Marcelo Gomes, que já construiu um retrato muito fiel das contradições do Brasil de hoje com o incrível documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, consegue reger Paloma com absoluta segurança, num filme tecnicamente muito bem realizado e também pleno de afeto. Um afeto genuíno, que em geral está ausente das narrativas centradas em personagens trans, que muitas vezes assumem um caráter quase sádico ao explorarem o sofrimento desse grupo. Marcelo Gomes, ao contrário, deixa que Paloma ame, que Paloma sonhe e – ainda mais importante – que ela seja amada (por seus pares e pelo espectador, que, ao fim do filme, e marcado pela cumplicidade de um olhar, já sonha junto com ela).


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