Críticas


A INVENÇÃO DO OUTRO

De: Bruno Jorge
20.11.2022
Por Maria Caú
Filme mais potente da mostra competitiva, o documentário produz atravessamentos corporal e emocionalmente intensos

Último filme exibido na mostra competitiva do Festival de Brasília deste ano, A invenção do outro foi também o título que impulsionou o debate mais acalorado entre a crítica. O documentário segue uma expedição realizada pela Funai em 2019 num território conflituoso, o Vale do Javari, na Amazônia. Essa jornada tinha por objetivo localizar um grupo de indígenas que vivem em estado de isolamento quase completo, da etnia dos Korubos, e articular o reencontro dessas famílias com membros que haviam se perdido nos anos anteriores, dispersos por conta das disputas da região. Ao início da narrativa, diversas cartelas alertam sobre os muitos perigos da travessia, informando que o local é palco de um embate entre etnias vizinhas, mas também sofre com ataques constantes de caçadores e pescadores ilegais, madeireiros e garimpeiros, que muitas vezes se aproveitam da rivalidade entre os grupos indígenas para agir com violência extrema e devastar a área. De partida, o espectador é convidado a seguir essa viagem apreensiva consciente das muitas ameaças possíveis: teme-se o ataque dos indígenas ao se sentirem acossados em seu território, uma emboscada de quadrilhas de criminosos, os muitos perigos naturais do coração da floresta e até mesmo que o contato entre pesquisadores brancos e povos isolados precipite um surto de gripe potencialmente fatal.

Delineado o complexo panorama, a narrativa acompanha os membros da expedição, entre eles o indigenista Bruno Pereira, que era então um dos maiores especialistas nesse tipo de operação, assassinado em 2022 numa outra viagem ao Vale da Javari, esta ao lado do jornalista britânico Dom Phillips, também vitimado na ocasião. O crime, ainda não inteiramente esclarecido, chama atenção para a política de enfraquecimento deliberado da Funai sob o governo Bolsonaro e sublinha a altíssima periculosidade do importante trabalho dos indigenistas. Se a excelência do ofício de Bruno Pereira e do corpo de profissionais (antropólogos, médicos) que o acompanham é evidenciada pelo documentário, o trabalho de construção narrativa elaborado pelo diretor Bruno Jorge (que captou sozinho cerca de 60 horas de material bruto) não cede à tentação fácil de heroicizar Pereira ou dar a ele claro protagonismo. Numa escolha muito mais interessante, os indígenas ganham centralidade, em especial o carismático Xuxu, que sobreviveu ao massacre de parte de sua família e deseja reencontrar seu irmão e alguns outros parentes. É Xuxu quem ganha um arco dramático bem delineado e passa a ser uma espécie de personagem-guia. São de Xuxu os medos, traumas, questionamentos, reflexões, arroubos de alegria ou explosões de lágrimas e gargalhadas que ecoam no público, em atravessamentos emocionalmente, corporalmente, intensos. Ciente do destino trágico de Bruno Pereira, o espectador não indígena procura o espelhamento neste homem branco e, ao encontrá-lo muitas vezes como observador (e não como personagem central), questiona por que buscar a comodidade de se projetar no corpo que lhe é mais familiar.

Aos poucos, à medida que a floresta se adensa, com seu silêncio enervante rompido aqui e ali pelos lamentos ou pelos risos daqueles que a habitam, o espectador é obrigado a se acomodar no lugar de outro, refletindo sobre alteridade de uma forma bastante radical. O filme arrebata e produz imagens singulares e que, por sua singularidade, engendram um processo que assume o risco do desconforto. É preciso perguntar como um crítico de cinema branco pode decodificar o que vê em tela, assim como é necessário refletir por que razão a visão de um macaco, escalpelado, assado e consumido, causa engulhos (e quais as diferenças entre essas ações e o ato aparentemente inócuo de fritar um bife).

A fotografia é outro elemento que desloca com habilidade as perspectivas de estranho/não familiar, com o corpo branco emergindo aqui e ali como um elemento intensamente estrangeiro naquele ambiente (um plano próximo dos pés de Pereira, cobertos de marcas e picadas de insetos, chama atenção). O ambiente sonoro (o desenho de som foi construído pelo realizador em colaboração com Bruno Palazzo) proporciona uma imersão profunda nos ruídos não familiares da mata (e cabe notar ainda que não apenas o filme dá aos indígenas maior tempo de tela, mas os diálogos são falados majoritariamente na língua local, que poucos membros do grupo de pesquisadores dominam, e legendados para a compreensão do público). Outro ingrediente de destaque é o humor (componente em geral ausente dos filmes etnográficos, que, se fazem rir, utilizam a pouco ética chave do riso que se apoia na construção estereotipada do indígena como ingênuo ou bizarro). Aqui, são os indígenas que debocham dos brancos e estranham seus comportamentos, reforçando seus laços de afinidade e afeto através do riso compartilhado.

Numa belíssima cena de catarse (que o diretor deixa que transcorra por diversos minutos, cruciais para a compreensão mais plena da dimensão deste evento), os indígenas questionam por que razão os brancos permanecem de pé, não se aproximam para tocá-los, não dividem com eles aquela experiência coletiva de afeto físico. Mais uma vez, o espectador é convidado a elaborar sobre a forma certamente ambivalente como a sociedade contemporânea lida com o corpo, a ideia de privacidade e individuação. Em outro excelente momento, um dos indígenas reencena para um público formado pelos seus, mas também para os pesquisadores e para a câmera, a memória de uma batalha com o grupo rival, e o faz mesclando sofisticadamente ingredientes cômicos à tragicidade do conteúdo, numa longa e mesmerizante performance. Se a tensão está sempre presente, ela não brota do estabelecimento de um antagonismo fácil entre mocinhos e vilões, mas é resultado da investigação aprofundada das muitas particularidades do universo retratado.

Num dos momentos mais instigantes do filme, quando um dos membros isolados questiona a presença da câmera, ele é imediatamente tranquilizado por um parente: “Isso não machuca”. Todos nós que pensamos cinema sabemos que sim, as câmeras podem machucar – e, frequentemente, o fazem. Obviamente, há questões que não devem ser ignoradas sobre os limites éticos de uma filmagem que retrata povos isolados, que não dominam o conceito de cinema e, por isso mesmo, não podem autorizar de forma consciente a veiculação de suas imagens (tais questões estão desde sempre no cerne do cinema e da pesquisa etnográficos). No entanto, o cinema de Bruno Jorge trabalha, de fato, com uma câmera que não machuca. E que propõe inteligentemente ao espectador reinventar-se como o outro de si, num deslocamento necessário para que a enorme potência das imagens possa atravessá-lo.

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Outros comentários
    5305
  • Will
    21.11.2022 às 22:24

    Incrível a sensibilidade desse diretor.
  • 5306
  • Will
    21.11.2022 às 22:26

    Imagens fantásticas.