“I thought that I heard you laughing / […] / I think I thought I saw you try”
- Losing my Religion - REM
Os versos “Eu pensei ter ouvido você rindo / [...] / Acho que pensei ter visto você tentar” (tradução livre), cantados pela banda de rock estadunidense R.E.M, são capazes de sintetizar a linha condutora de Aftersun, uma obra feita a partir das memórias. Entoados pela personagem principal, Sophie, em uma cena crucial, ressaltam que a história mostrada em tela parte de sua perspectiva, de como ela se recorda e de como ela “pensa” que aconteceu. É envolta por esta bruma de recordações e sentimentos que a trama se desenvolve.
Longa-metragem de estreia da diretora britânica Charlotte Wells, também responsável pelo roteiro do filme, Aftersun acompanha Calum e Sophie, pai e filha, durante uma viagem de férias pela Turquia no final dos anos 90. Interpretados de forma admirável por Paul Mescal (conhecido pela série Normal People) e pela jovem atriz Frankie Corio, os dois personagens e a sua relação são o ponto alto da narrativa, ainda que o arco pessoal de amadurecimento de ambos tenha também destaque.
As primeiras imagens do filme, fragmentos difusos de uma mulher em local indefinido, mostrado em flashes, funcionam como metáfora do inconsciente da personagem principal e, por consequência, da diretora. Ao fazer uso deste efeito, Charlotte Wells mostra ao espectador o universo e a ambientação da história contada, permitindo seu acesso e convidando-o a fazer parte dele. Tal artifício deixa claro o envolvimento e a proximidade da cineasta com a obra.
Se, em um primeiro momento, o filme parece uma espécie de coming-of-age alto-astral, essa hipótese logo é descartada. Seja por meio dos diálogos, dos silêncios ou do desconforto de Calum diante de alguns questionamentos da filha, seja por meio de informações apresentadas sutilmente – como, por exemplo, os livros mostrados em destaque durante um considerável tempo de tela –, fica evidente que temáticas mais delicadas são abordadas. O amadurecimento da jovem de onze anos é sim trabalhado na trama, mas é a latente depressão de Calum e seus impactos que formam o cerne da história.
A tentativa de “mascarar” e controlar um quadro depressivo com o objetivo de não afetar dinâmicas relacionais próximas, principalmente relações parentais, como o caso de Calum e Sophie, não é algo incomum tanto nas telas quanto na vida cotidiana. A tristeza, a frustração e até mesmo a impaciência que Calum tenta em vão ocultar, algo similar a uma mola exaustivamente comprimida, são notáveis na atuação de Mescal. Também é marcante a perspectiva de Sophie, que, mesmo com sua pouca idade, reconhece algo errado, embora não consiga distinguir exatamente o quê. Há uma contínua sensação de inadequação e também um esforço de ambos os lados para que tudo pareça “bem”.
Pessoalmente, e aqui lhes peço licença, a sutil relação entre pais e filhas e o desafio de viver com um quadro depressivo próprio ou de pessoas próximas são, em diferentes aspectos, tópicos muito sensíveis e pertinentes para mim. Logo, é impossível para alguém que já sofreu algo similar não reconhecer a dor presente nos olhos de Paul Mescal, ainda que ele esteja sorrindo ou dançando ao som de Under Pressure, da banda Queen, em uma das melhores e mais emocionantes sequências do filme.
A diretora é competente ao usar diversas metáforas visuais, que vão desde o braço engessado de Calum ao tapete adquirido pelo personagem durante a viagem. A busca por estabilidade e pertencimento, somada à necessidade de transmitir o mesmo à filha, não poderia ter sido melhor representada. A fotografia do filme, cuja estética se assemelha a um antigo álbum de retratos, é completamente pertinente, pois os acontecimentos são mostrados de acordo com a memória de uma menina de onze anos. Imagens refletidas em diferentes superfícies, como espelhos, televisores ou até mesmo o tampo de uma mesa, enfatizam uma necessidade de que o espectador não se esqueça de que está acompanhando uma perspectiva distorcida dos fatos.
Exibido em diversos festivais de cinema e vencedor de diferentes categorias e prêmios, incluindo o French Touch Prize of the Critics' Week Jury em Cannes, Aftersun é um filme triste, denso e, ao mesmo tempo, extremamente sensível e cativante. Em tempos de produções com mais de três horas de duração que parecem não ter nada a acrescentar, Charlotte Wells mostra, em sua estreia, que 102 minutos são mais do que suficientes para uma cuidadosa obra, capaz de afetar até o mais indiferente dos espectadores. Trata-se de um excelente começo para a cineasta, que sem dúvidas aguçou a curiosidade do público cinéfilo.
Aftersun foi exibido em festivais, cinemas e está disponível na plataforma de streaming MUBI desde o dia 06 de janeiro de 2023.