Especiais


26ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES (2023)

20.01.2023
Por Leonardo Luiz Ferreira
Edição marca o retorno ao formato presencial

Após duas edições em formato online, a tradicional Mostra de Cinema de Tiradentes retorna ao formato presencial em sua vigésima sexta edição. A abertura do evento gratuito aconteceu no dia 20 de janeiro, com uma sessão em homenagem à dupla de realizadores Ary Rosa e Glenda Nicácio (Café com Canela, 2017), que lançam em pré-estreia seu mais novo trabalho, Mugunzá. Sobre os dois, o crítico Daniel Schenker escreveu aqui no site, durante a cobertura do Festival de Brasília 2018, na exibição do filme Ilha: “Ary Rosa e Glenda Nicácio defendem, de forma explícita, a realização de um cinema autoral, de resistência, não oprimido pelas leis de mercado, como o que fazem no Recôncavo da Bahia.”

A temática dessa edição é Cinema Mutirão, com a exibição de 134 filmes, abarcando um total de 18 estados do Brasil e o Distrito Federal, divididos em 14 segmentos de programação – desde o núcleo de panorama das produções brasileiras até o infantil (Mostrinha). Além das exibições, a Mostra de Tiradentes realiza debates sobre a situação do audiovisual no país, entre outros temas. A presente cobertura terá como foco principal a seção competitiva Aurora, que exibe sete filmes de jovens realizadores do cinema brasileiro, cuja filmografia se limita até três longas-metragens. É o espaço ideal para refletir sobre o cinema contemporâneo nacional através do olhar para novos autores que apontam para o hoje e o porvir. Além de críticas e breves entrevistas da Aurora, a cobertura deve trazer outros textos de produções que despertarem a atenção.

Todas as informações sobre o evento podem ser acessadas através do endereço mostratiradentes.com.br. Por intermédio desse site oficial, os espectadores também podem assistir a cerca de 40 produções disponibilizadas gratuitamente online.

Um dos principais eventos da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes foi, sem dúvida, a concepção e leitura de uma carta dedicada à cadeia do audiovisual nacional como um todo, com reflexões de todas as áreas que compõem o setor, a ser encaminhada ao Ministério da Cultura e Ancine. Após um período político tão conturbado, o sentimento geral foi de estagnação, interrupção de um trabalho de construção de identidade cultural do país. O momento é sim de união e reconstrução, por isso foi tão necessária, urgente e importante a realização desse fórum.

O principal legado do documento só será conhecido no decorrer dos anos com a adoção de sugestões e revisões propostas por profissionais da área. Mas aquilo que pode ser ressaltado de momento é que esse movimento, que uniu tantas partes do setor audiovisual, é único no sentido de diálogo, de criação de pontes entre os agentes culturais, que aparentemente estão próximos, entretanto carecem de um encontro, de um entendimento conjunto do que cada um representa e pode acrescentar em outros setores: olhar de dentro para fora.

O manifesto, que pode ser conferido, em suas linhas gerais, no site oficial da Mostra, é a construção de uma história possível de políticas públicas para o desenvolvimento do cinema brasileiro, gestado através de muitas vozes – uma marca da pluralidade nacional. Os seus frutos ainda serão medidos no porvir, mas o gesto é marcante desde o nascimento.



Clique para ler os textos completos da cobertura.



Entrevista: PEIXE ABISSAL, de Rafael Saar



Por Leonardo Luiz Ferreira

O filme Peixe Abissal preenche a tela com uma imersão à vida e obra do artista Luís Capucho, no qual o eu-ficcional se confunde com o eu-real num jogo de cena criativo e inventivo. A mise-en-scène abraça o universo traçado por letras, poesias e pinturas de Capucho para construir um retrato multifacetado com liberdades poéticas e reconstituições de fatos do passado. É através do cinema de poesia, que evoca Pier Paolo Pasolini, que o cineasta Saar compõe o quadro de um personagem que transita entre o sagrado e o profano e sobrevive pela e para a arte. Na entrevista, o realizador elucida o processo de criação, expõe suas influências para além do cinema e reflete sobre o legado de Luís Capucho para a cultura nacional.



Como e quando surgiu a ideia do projeto?

Rafael Saar: Peixe Abissal nasce de encontros: a princípio do meu com Luís Capucho, em 2012. O interesse que tenho pela música brasileira, que me aproximou de Ney Matogrosso, com quem realizei alguns trabalhos e que naquele período disse ter vontade e receio de gravar uma canção chamada Cinema Íris, composta por Capucho. A letra era muito explícita, e eu já conhecia o nome de Luís através de Maluca, uma música gravada pela Cássia Eller, que sempre me tocou. Descobri que Luís, assim como eu, morava em Niterói, nos encontramos e ficamos na ideia de fazer um videoclipe para sua gravação de Cinema Íris, que iria dar nome ao seu novo álbum. O clipe não rolou, era muito difícil conseguirmos acesso ao espaço do Cine Íris, um cinema pornô do centro do Rio de Janeiro. Fizemos um outro, Eu quero ser sua mãe, e aos poucos fomos nos conectando. Conhecendo a história e a obra de Luís, pareceu natural que fizéssemos um filme, que serviria no mínimo como a oportunidade de realizarmos uma gravação de Ney para uma música de Capucho e a filmagem dentro do Cinema Íris. Desejos do Luís que tomei como meus também e que foram possíveis a partir de 2014, quando articulamos a realização do filme.



O filme apresenta diálogos, poemas, canções, reconstituições, entre outras inserções. Fale um pouco sobre o processo de escrita do roteiro.

Rafael Saar: Capucho tem uma obra multi artística de literatura, músicas, pintura, um blog diário - tudo conectado através de sua própria história que serve de base para o que chama de ficção biográfica. O roteiro incorpora essencialmente esses personagens que permeiam esta obra, a mãe de Mamãe me adora, que cumpre sua promessa em uma viagem à catedral de Aparecida, os rapazes da cabeça de porco de Rato.

Seu primeiro livro, o maravilhoso Cinema Orly, narra suas idas a este cinema pornô carioca, escrito como exercício de caligrafia e oportunidade de dar vazão ao tesão, enquanto Luís estava preso à reabilitação após o coma que sofreu em 1996. Cinema Orly também é uma canção, e assim como Cinema Íris, está incorporada dentro deste livro. Estas conexões e atravessamentos foram o principal instrumento de construção do roteiro, com recriação e invenção de situações que ligam onírico e cotidiano, sagrado e profano, masculino e feminino.



Um dos principais elementos da produção está no desenho de som, que consegue trazer espacialidade a narrativa bem como criar imersão. Qual foi a dinâmica para o trabalho de som?

Rafael Saar: O desenho sonoro foi construído pelo Thiago Sobral e foi realmente um trabalho de imersão. O som direto de Guilherme Farkas dá conta dos ambientes e percursos que vão do bairro de Capucho, sons de pássaros, vizinhos e cachorros de rua, minuciosamente descritos em seu trabalho autoral; o cinema pornô, em que enfatizamos os sons corpóreos, respirações, suspiros, gemidos; e assim por diante, sempre em uma ideia de fluxo aquático, de sons que transbordam as fronteiras da diegese e em diálogo musical e textual. A música tem desde gravações antigas, de fitas cassete do Luís; canções de Luís arranjadas e gravadas para o filme, como A masculinidade, Homens machucados ou Destruição, interpretada pelo Ney Matogrosso; além de uma trilha incidental feita com as lindas harpas de Cristina Braga, e a experimentação com guitarra com Sobral e percussão feita por Lucas Fixel. A narração de Capucho dá conta principalmente da dimensão literária da obra e sua voz, com seu ritmo próprio de dizer as coisas, dá corpo ao texto que vai além do fato em si.



Refletindo sobre influências, tanto diretas quanto indiretas, percebo ecos de Pasolini, Almodóvar e João Pedro Rodrigues, mas também de uma porção de documentário experimental, no sentido de diário, como Jonas Mekas. Quais foram as principais referências para o trabalho e quais são os seus faróis do cinema, aqueles que você revisita com frequência?

Rafael Saar: Das influências diretas para o filme passamos não somente por referências cinematográficas, mas visuais e sonoras de múltiplas formas. Posso citar Kenneth Anger, cujos filmes tivemos contato na fase inicial do projeto, Jean Genet, que homenageamos numa referência a Un chant d'amour na sequência do banheirão, além do fotógrafo Robert Mapplethorpe. De forma direta também trazemos muitos dos vídeos feitos por Pedro Paz, companheiro de Capucho. Pessoalmente a obra de Pasolini sempre me interessa e influencia, assim como seus escritos sobre cinema de poesia; mas, principalmente, o cinema de invenção brasileiro é o que revisito e sou assíduo. Cinema novo, cinema marginal, e pessoas com quem tive a oportunidade de trabalhar como Joel Pizzini, Helena Ignez, Allan Ribeiro, Joaquim Castro, são artistas com quem aprendo e acompanho.



Qual é o principal legado da obra de Luís Capucho para a cultura nacional?

Rafael Saar: Luís Capucho tem um trabalho único e muito brasileiro, em que sua composição, voz, letras, melodias, toque do violão, tudo une arte e artista, vida e sonho. Considero sua criação genuína, mesmo sendo colocado como marginal, pela explicitude dos temas, faz uma arte popular e singela, mais Evaldo Braga que Sérgio Sampaio (ambos maravilhosos). Em Luís, belo e sujo, divino e mundano, tudo convive e é fonte de poesia de forma impensável.



Crítica: CERVEJAS NO ESCURO, de Tiago A. Neves



Por Leonardo Luiz Ferreira

A inclusão do longa paraibano de estreia do realizador Tiago A. Neves é um gesto curatorial dos mais significativos dentre as produções exibidas na Mostra Aurora. Normalmente, os filmes dessa seção da Mostra Tiradentes são voltados para um experimentalismo em termos de linguagem e estética fruto de uma ruptura do cinema clássico narrativo para apresentar novas formas, ideias e conceitos. O que Cervejas no Escuro trabalha e apresenta é um cinema com ligações umbilicais a arte naïf, de apelo e diálogo popular; apesar da utilização de plano-sequência e da metalinguagem, é, em sua essência, uma experiência afetuosa que se enquadra completamente no conceito da 26ª edição do Festival, o Cinema Mutirão.

O plano-sequência da abertura introduz o que parece ser uma dinâmica familiar e que depois revela tratar-se de um velório. A protagonista Edna decide superar o luto pela morte do marido realizando um filme para competir no festival da cidade. É o gesto do cinema como cura, de uma percepção da realidade filtrada pela câmera para superar adversidades do cotidiano. Não há lágrimas em Cervejas no Escuro, só alegria do coletivo, da união de amigos em prol da realização de um sonho: uma quimera em fotogramas.

A utilização de não atores provoca uma genuína interação por entre câmera e personagens, sem esse frescor no olhar, não seria possível adentrar de peito aberto na narrativa. O realizador trabalha com sequências longas, que vão variar entre si mesmas com modulações emocionais: a filmagem de uma lembrança de relacionamento amoroso é atravessada pela comédia de corpo, interrupções e uma mirada observacional próxima ao documentário. Ali, parado, permitindo que as interações aconteçam e se revelem com naturalidade em frente à câmera, o diretor captura e coloca o espectador como testemunha de uma história, um pertencimento aquele espaço que gera identificação.

Por mais que o filme apresente inúmeras irregularidades em termos técnicos e de encenação, é nessa entrega de um cinema ingênuo que faz com que Cervejas no Escuro se sobressaia e exista como peça necessária no tabuleiro da sétima arte e que quase não recebe voz em meio aos festivais e circuito. Um cinema popular, com orgulho.



Entrevista: O CANGACEIRO DA MOVIOLA, de Luís Rocha Melo



Por Leonardo Luiz Ferreira

O documentário O Cangaceiro da Moviola integra a Mostra Olhos Livres, em Tiradentes, que versa sobre diferentes formas do fazer e criar cinematográfico. O cineasta traça o retrato de Severino Dadá, um dos mais inventivos montadores do cinema brasileiro, um verdadeiro artesão da sétima arte. Entre outros trabalhos, Dadá montou O Amuleto de Ogum (1975), de Nelson Pereira dos Santos (que concede, em 2017, para o documentário uma de suas ultimas entrevistas), e formou sólidas parcerias com Rosemberg Cariri, Zózimo Bulbul, Octávio Bezerra e Rogério Sganzerla. Ele é um autodidata que o cinema nacional, infelizmente, não mais produz: estudou edição por conta própria, inclusive lendo autores e vendo muitos filmes, para se transformar num artista do corte que coloca literalmente a mão na massa, no caso o fotograma, para extrair o material fílmico. A partir do registro de sua trajetória e guiado por sua narração em off, o longa perpassa parte da História do Cinema Brasileiro, com um vasto material de arquivo devido ao olhar cuidadoso do professor e pesquisador Luís Melo. Na entrevista abaixo, o realizador discorre sobre o projeto e reafirma o legado de Severino Dadá.



Quando e como surgiu a ideia para o projeto?

Luís Rocha Melo: Os primeiros registros que fiz datam de 2004. A ideia de fazer um documentário sobre o Severino Dadá parte de duas motivações principais. A primeira delas tem um caráter bem pessoal, e traduz a longa relação de amizade minha com Dadá, que vem desde o final dos anos 1990. A segunda decorre de um interesse que sempre tive pela história e pela historiografia do cinema brasileiro e, dentro disso, pelo papel de profissionais que em geral não estão no foco de atenção, aqueles que normalmente são chamados de "técnicos", mas que também exercem um papel criador. Severino Dadá, um dos mestres da montagem cinematográfica no Brasil, é, sem dúvida alguma, um desses profissionais que aliam a habilidade técnica a um alto grau de criatividade. Ao falar da trajetória de Dadá na montagem, O Cangaceiro da Moviola proporciona que o espectador entre em contato com a história recente do cinema brasileiro (dos anos 1960 para cá) através de outro viés, de outra perspectiva, o que forçosamente implica em repensar a própria construção dessa história.



O documentário tem um trabalho extenso de imagens de arquivo por entre fotos, cenas de filmes e entrevistas. Fale um pouco sobre o processo de pesquisa e cite as dificuldades de encontrar certo material.

Luís Rocha Melo: O Cangaceiro da Moviola é um filme de montagem sobre um montador. Nesse sentido, sua base é a heterogeneidade, que está presente tanto nos materiais de arquivo utilizados, quanto no próprio processo de filmagem, que foi realizado ao longo de anos, e que, naturalmente, resultou em um conjunto bastante diversificado de registros. O filme traz algumas imagens de arquivo preciosas, tais como imagens do Beco da Cinelândia nos anos 1970, eletricistas como Oswaldo Tendão e Ulisses Alves dando entrevistas, e diversos trechos de filmes de cineastas até hoje sequer ou muito pouco estudados, como Augusto Ribeiro Jr., Octávio Bezerra, Geraldo Miranda e Kátia Mesel. Isso tudo abre novas possibilidades de leitura desse cinema que se fez, por exemplo, nos anos 1980-90. Foi um processo intenso de pesquisa, em arquivos como o CTAv e o Arquivo Nacional. As dificuldades que tive, decorrem do que todos nós sabemos em relação à questão da preservação de filmes no Brasil, ou seja, o fato de que os filmes se perdem por falta de condições de conservação e de políticas públicas voltadas à preservação. É angustiante, por exemplo, saber que não existem cópias de um filme como Luciana, a comerciária, único longa-metragem de Mozart Cintra, filmado em 1974 na cidade de Pedra, onde Dadá nasceu. É a memória cinematográfica como um todo que sai perdendo.



Qual é o principal legado de Severino Dadá para o cinema brasileiro?

Luís Rocha Melo: O Cangaceiro da Moviola responde a essa pergunta de diversas formas, e nesse sentido é um filme de múltiplas leituras. Trata-se de um montador que descobre o cinema na prática, vendo filmes, fazendo filmes. Um brasileiro nascido no interior de Pernambuco que vai montar filmes de Nelson Pereira dos Santos e do Beco da Cinelândia, de Rogério Sganzerla e de Luiz Paulino dos Santos, de Zózimo Bulbul e de Rosemberg Cariry, de Kátia Mesel e de Ruy Santos. Pela própria natureza do trabalho de um montador, percebemos que o cinema brasileiro não é uma linha reta ou um desfilar de autores com discursos coerentes, mas um trabalho que se faz a partir de conjunturas as mais diversas possíveis. O legado de Dadá, explicitado no meu documentário, é justamente o de que não há tanta distância assim entre Nelson Pereira dos Santos e Nilo Machado: o cinema brasileiro não pode ser entendido afirmando um pela exclusão do outro.



Crítica: XAMÃ PUNK, de João Maia Peixoto



Por Leonardo Luiz Ferreira

O argumento do filme parte da Alegoria da Caverna, de Platão, no qual uma comunidade isolada só enxerga vultos e sombras do lado de fora, mas projeta um desejo de expandir o olhar e a consciência. Uma narração em off situa a ação e a proposição de cinema de Xamã Punk: buscar a luz, ter contato com o outro e vivenciar uma experiência verdadeira para além da caixa. Nesse plano inicial, há um investimento estético para traduzir em imagens a proposta: o olhar é capturado pela iluminação externa até o choque visual que desnorteia a percepção. A fotografia de Pedro Farina assume uma iluminação translúcida, com auxílio da névoa e de tons escuros.

Os personagens partem do desenvolvimento de um falso documentário para registrar um mundo em ruínas, uma sociedade decadente e distópica. Então, a partir da disposição dessas linhas gerais, o longa vai se estruturar em encontros com humanos a vagar e ocupar espaços desse universo em decomposição, destroçado. O que se observa em Xamã Punk é que tudo partiu de um conceito e um dispositivo para ilustrá-lo: o registro da experiência pelos personagens (e equipe) em formato audiovisual. Só que sem a construção dramatúrgica e de mise-en-scène adequada para criar uma sustentação própria: a narrativa percorre encontros aleatórios, personagens que desaparecem sem desenvolvimento e, sobretudo, sem um conflito dramático real: o filme não levanta questões, por mais que pareça traçar algo maior do que o exposto em si em cena. O texto filosófico e reflexivo, ou não, é inexistente; e a questão da performance dos corpos nunca é explorada: a transgressão é superficial, apesar de tudo sugerir para o caos e descontrole, ele só será brevemente concretizado no desfecho. Independente do orçamento (R$16 mil), ressaltado pelo realizador na apresentação do filme, e tempo de gestação do projeto (cerca de oito anos), a linha da produção é sempre nebulosa; sem coesão, mesmo o cinema experimental leva ao completo desinteresse em seu desenrolar: o ensaio imagético e sonoro estão ali, mas sem imanência – a jornada como um todo sempre importa e não apenas parte dela. É flagrante, nesse sentido, que o longa termine com um plano-choque para solucionar, de certa forma, todas suas deficiências: é um movimento comum no cinema contemporâneo, quase como um Deus Ex Machina, que busca surpreender o espectador, que atordoado, reavalia o que viu, sem saber muito bem como a experiência desembocou ali.

Xamã Punk mira uma reflexão sobre civilização, isolamento e recomeço do homem num mundo pós apocalíptico, com uma aproximação ao cinema marginal brasileiro dos anos 70, mas só consegue fixar o olhar para o vazio estético: o espelho, infelizmente, não revela nada para além da superfície. Os personagens buscam a luz, mas permanecem mergulhados na escuridão da caverna.



Crítica: AS LINHAS DA MINHA MÃO, de João Dumans



Por Leonardo Luiz Ferreira

“Um filme simples e sem pretensões”, declarou o diretor João Dumans na abertura da Mostra Aurora - a porção competitiva de Tiradentes voltada para cineastas com até três longas no currículo: As Linhas da Minha Mão projeta-se na tela com uma cumplicidade entre o cineasta e sua personagem, a atriz Viviane Ferreira. É uma jornada íntima que parte de um distanciamento inicial para uma comunhão de fato entre o espectador e a obra no decorrer da narrativa.

A estrutura do projeto está dividida em sete atos, que tem como mola propulsora a extensão do plano para que as revelações se imprimam de maneira impositiva no documentário. É através do olhar para a personagem, por entre o afeto, compreensão e observação, que Dumans traça seu retrato. Fica nítido durante cada passagem de tempo que há um tatear, uma busca por encontrar uma forma para extrair a essência de Viviane: na abertura, a câmera desenha uma assinatura visual voltada para o movimento corporal dos atores em meio a um exercício matinal. Essa câmera livre está demarcada pela trilha sonora e o desenho de som em uma junção estética de corpo, balanço e música; em outro instante, a câmera permanece ali silenciosa a observar.

As Linhas da Minha Mão busca dar voz e materialidade à personagem para que ela possa fabular e desenvolver seu pensamento. Por essa razão, toda intermediação tentada, como a interferência de outros personagens/amigos da atriz, acaba por diluir em parte a experiência, ainda que no todo seja vigorosa. Viviane mesmo frisa que não quer ser interrompida em sua linha de raciocínio: “não me atrapalha, deixa eu terminar de falar.” Em especial, nesse caso, as proposições filosóficas, como o segundo ato que se desenrola em meio a uma leitura de Nietzsche, criam distanciamento, pois são ruídos no discurso: Viviane tem brilho próprio para contação de histórias, como no belo momento em que descreve uma paixão fulminante amorosa de uma noite: “o sexo é a única forma de afeto que você pode receber de um homem!”.

A montagem de Luiz Pretti cria a sensação de fluxo, de organização interna e externa dos planos, em uma espécie de crescendo dramático: distanciado no início e completamente colado na personagem no desfecho. Ao término, forma-se aqui um desejo de ver e ouvir mais Viviane. A câmera, operada pelo próprio Dumans, passeia, em certos momentos, pelo improviso do jazz, chega até a perder o foco. Na verdade, não existe contraplano possível: Viviane é frontal, desafiadora e preenche completamente a tela.



Crítica: CAIXA PRETA, de Saskia e Bernardo Oliveira



Por Leonardo Luiz Ferreira

A sinopse do média-metragem já parte de uma citação abstrata indicando que a materialidade da produção será voltada ao experimento narrativo: o som antecede a imagem, depois a música e uma amálgama de vozes guiam o espectador para um efeito de transe, com uma cacofonia de cânticos e vocalizações. A essência de Caixa Preta vai residir numa experiência sensorial, sobretudo, sonora, e dissonante, na condução do olhar.

Primeiro, o conceito de Caixa Preta abre para interpretações: a do avião guarda e retém as informações do voo, documentando a realidade objetiva da viagem; e a da TV, como também foi apelidada, para exibir propagandas e programas de entretenimento. A aproximação aqui está com a obra mais experimental de Jean-Luc Godard em uma espécie de “adeus à linguagem”, numa fricção entre mídias para produzir algo distinto – o que vai acontecer com maior (a apresentação musical de caráter religioso) e menor (uma crítica literal ao whitewashing) grau de força.

O guia estético de Caixa Preta é o cinema de montagem intelectual de Sergei Eisenstein: colocar em cena um choque entre imagem, som e texto para provocar um novo significado, ou, ao menos, sugerir uma interpretação. Então, de um lado há uma promoção de um supermercado com corpos digladiando-se em telas divididas, seguido de um assalto na rua. Tudo isso processado pelo desenho de som criando uma dissonância. A narração em off ressalta a proposta ao questionar a narrativa clássica e exaltar o transe. Em meio a formatos que variam entre a videoarte, material de arquivo e intervenções no vídeo, Caixa Preta reflete sobre o racismo, promove uma leitura de memórias compartilhadas e coloca em foco manifestações populares.



Crítica: ENTRE A COLÔNIA E AS ESTRELAS, de Lorran Dias



Por Leonardo Luiz Ferreira

Na abertura, a câmera flutua ao emular o trote vagaroso do cavalo. Por entre a vegetação e arquitetura, o cineasta Lorran Dias começa a tecer sua narrativa, que parte de um fato real do Rio de Janeiro: um episódio que foi classificado como o “verão da geosmina”, sobre uma crise hídrica que assolou a cidade em 2020. Entre a Colônia e as Estrelas vai se equilibrar num fio condutor de imagens digitalizadas a partir de fitas VHS da Colônia Juliano Moreira – instituição criada para abrigar pacientes psiquiátricos, alcoólatras e pessoas à margem – e uma história ficcional ambientada no local, com aproximação ao cinema de gênero: o sumiço de pessoas acontece a partir da ingestão de água contaminada. Os indivíduos literalmente desaparecem e se transformam em uma poça.

Há uma mescla de atores e não atores em busca de um naturalismo, como na sequência da balconista que fala da falta de fornecimento de água e de sua vida. Mas é exatamente na encenação que surgem às deficiências: aquilo que se quer contar não encontra - na maioria das vezes, nos diálogos e interações interpessoais – ressonância forte na tela. O discurso não transcende a forma.

O mérito de Lorran está em transitar claramente em duas instâncias: a documental, com fotografia tradicional, que reflete sobre a micropolítica nas relações em uma exposição da questão de classe (por mais que o tema não seja bem resolvido); e o pesadelo, com tons cinza e escuros, de uma atmosfera onírica que a personagem adentra. É desse estranhamento que o média-metragem retira sua potência imagética, e como afirma o cavalo com voz feminina: “buscar coragem para se reinventar”.







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