Críticas


EL CRÍTICO

De: Javier Morales Perez, Juan Zavala
Com: Pepa Blanes, Icíar Bollaín, Carlos Boyero
23.01.2023
Por Marcelo Janot
Documentário se debruça sobre a vida e obra do polêmico espanhol Carlos Boyero

Em 2004, a diretora e atriz Maria de Medeiros ofereceu sua contribuição ao debate sobre a conturbada relação entre críticos e cineastas no documentário “Je T’Aime...Moi Non Plus”. Quatro anos depois foi o diretor e crítico Kleber Mendonça Filho quem revisitou o tema em “Crítico”. Muita coisa mudou no exercício da crítica de cinema de 2008 pra cá, quase uma revolução causada pelo surgimento de youtubers, tiktokers, twitteiros e toda sorte de “influenciadores” midiáticos que passaram a ter muito mais influência sobre o grande público “consumidor” de cinema do que os críticos que exercem sua função na mídia tradicional.

O espanhol Carlos Boyero é um desses espécimes que parecem em vias de extinção: o crítico de jornal que construiu uma reputação em jornais de grande circulação como El Mundo e El País, onde trabalha desde 2007, e segue bem remunerado com dedicação exclusiva ao ofício. Ainda considerado o mais famoso crítico espanhol, embora desconhecido da nova geração de cinéfilos, ele é um testemunho vivo dessa transição ocorrida nas últimas cinco décadas.

Por isso, o documentário “El Crítico” (2022), de Javier Morales Pena e Juan Zavala, disponível na HBO, tem um duplo interesse: mostrar o que mudou, as consequências desse gap geracional na profissão, e ao mesmo tempo oferecer um perfil biográfico de uma personalidade polêmica como Boyero. Filmado em 2021 durante o Festival de San Sebastián, que Boyero diz ter sido o último de sua carreira, o filme tem uma atmosfera melancólica que se evidencia nos momentos em que se ocupa da vida pessoal do crítico.

Como muitos jovens que se mudaram para a fervilhante Madri dos anos 70, Boyero viveu intensamente os recém-conquistados ares de liberdade com o fim da ditadura franquista. Nas décadas seguintes, ao se destacar como crítico, conjugando aparições na TV com o texto afiado, culto e impulsionado pela vocação de polemista, se tornou uma celebridade no meio cultural espanhol – temido pela classe cinematográfica por seus comentários negativos, seguido por um imenso público fiel.

É um cenário contrastante com os dias atuais. Perto de completar 70 anos, Boyero se sente só – não tem filhos nem parentes próximos, e os companheiros de tantos festivais ou morreram ou se aposentaram. Segue odiado por alguns cineastas, como Pedro Almodóvar, a quem nunca poupou de pesadas críticas e que se recusou a dar depoimento para o filme. Foi Almodóvar, junto com outro respeitado diretor espanhol, Victor Erice (“O Espírito da Colmeia”), quem liderou um abaixo-assinado para que o El País demitisse Boyero em 2008, quando o crítico escreveu que abandonou a sessão de “Shirin”, de Abbas Kiarostami, em Veneza, por achar o filme insuportável.

Boyero está no El País até hoje, mas seus textos já não repercutem como outrora – no documentário, um professor universitário conta que perguntou em sala de aula quem já tinha lido algo de Boyero e nenhum aluno sequer tinha ouvido falar dele. Por isso soa um tanto artificial, com suspeita de encenação, o momento em que ele está do lado de fora de um cinema e uma jovem, como se o tivesse reconhecido, surge com um jornal pedindo um autógrafo para seu pai.

Já faz um tempinho que o exercício da crítica está confinado a uma bolha – praticamente escreve-se para um nicho cada vez menor de cinéfilos e para a própria classe. Com razão, Boyero detona aqueles críticos que constroem sua carreira como meros bajuladores dos cineastas de seu país – algo muito comum aqui no Brasil também. Mas seu estilo ferino, sem papas na língua na hora de expor comentários considerados misóginos e agressivos, não é mais tolerado no mundo de hoje, sobretudo pela nova geração de críticos. Pode soar divertido vê-lo em uma cena, na mesa de um restaurante, comentando com um amigo como acha chatos os filmes de Apichatpong Weerasetakul, mas também seria interessante assistir a ele sendo confrontado diretamente por um(a) crítico(a) mais jovem.

Esse incômodo de quem se recusa a se adaptar às mudanças de um mundo em que a ideologia politicamente correta se torna cada vez mais imperativa em todas as instâncias sociais e culturais está evidente em cada declaração de Boyero. Ele não poupa críticas nem mesmo ao filme vencedor do Festival, o romeno “Blue Moon”, que segundo ele só levou o prêmio principal porque era realizado por uma mulher e tinha um viés feminista.

Avaliar o caráter de “justiça” em premiações é um tanto complicado, até pela subjetividade que envolve o papel dos jurados. O fato é que os tempos mudaram. E quando o tempo de Boyero no El País se acabar, mais um símbolo de uma era estará sepultado.



(publicado originalmente em O Globo 18.1.23)

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