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THE SURVIVAL OF KINDNESS

13.04.2023
Por Marcelo Janot
Vencedor do prêmio da crítica em Berlim mostra força e frescor em relação a tantos filmes e séries de TV que tratam de distopias.

Conhecido por ser o mais político dos principais festivais de cinema do mundo, a edição de 2023 do Festival de Berlim fez jus à fama trazendo, já na sua cerimônia de abertura, uma participação ao vivo transmitida em vídeo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que também foi tema de um documentário dirigido por Sean Penn. No que diz respeito aos filmes, o que percebemos em muitos títulos de sua competição principal foi que o foco esteve voltado para histórias pessoais, dramas íntimos e familiares. São filmes em que a política, quando não esteve ausente, se manifestou nas entrelinhas, como pano de fundo, ou metaforicamente.

Levemos em consideração que este é o primeiro Festival de Berlim 100% “normal” depois da pandemia de Covid. Se boa parte desses filmes foi gestada durante um período de reclusão, isolamento e incertezas, faz sentido imaginarmos que o foco de seus realizadores esteja voltado para dentro, para a nossa existência individual, e de que maneira podemos, olhando para como nos relacionamos com passado, pensarmos o futuro.

Um ótimo exemplo foi a instigante produção australiana “The Survival of Kindness”, escrita e dirigida por Rolf de Heer, que venceu o prêmio da FIPRESCI na competição principal. Embora branco e nascido na Holanda (se mudou para a Austrália aos 8 anos), de Heer se notabilizou por filmes como “Ten Canoes”, “The Tracker” e “Charlie’s Country”, em que dá voz e protagonismo a aborígenes australianos, as questões que envolvem sua relação com a terra que originalmente lhes pertencia e os conflitos advindos da colonização.

Gestado durante a pandemia, “The Survival of Kindness” é o mais radical e abstrato dos filmes do diretor. Ele contou ter se inspirado não apenas no cenário apocalíptico sugerido pela COVID como também pelo movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos e seus reflexos ao redor do mundo. Ou seja, sua distopia é fortemente ancorada na realidade contemporânea, e a crítica social vem embalada em abordagem original e poética que lhe confere força e frescor em relação a tantos filmes e séries de TV que trataram de distopias nos últimos anos.

As primeiras imagens mostram um grupo de pessoas brancas usando máscaras de gás confraternizando em torno de um bolo decorado com a cena de negros sendo assassinados por supremacistas brancos. É desconcertante sobretudo porque, do lado de fora da casa, em meio à desértica paisagem do Outback australiano, uma mulher negra se encontra aprisionada em uma jaula, deixada ao relento sem água nem comida. O céu estrelado rodando sobre ela em velocidade acelerada acentua a noção de passagem do tempo, e detalhes hiperrealistas, como formigas em superclose lutando entre si, transmitem a sensação de uma realidade distorcida que ao mesmo tempo parece tão próxima e incômoda.

Depois que Black Woman (a personagem não tem nome, é assim que é apresentada nos créditos) consegue escapar, começa sua jornada sem rumo definido. Como sobreviver em meio a um mundo devastado por um suposto vírus (que parece atingir apenas pessoas brancas) e dominado por supremacistas? No percurso entre a aridez do deserto e a região montanhosa da Tasmânia, Black Woman se depara com situações que vão evidenciar os diversos elementos que compõem o diagnóstico metafórico promovido por Rolf de Heer em “The Survival of Kindness”.

É um mundo em que o diálogo se tornou supérfluo. Ao longo de todo o filme os personagens se comunicam através de murmúrios incompreensíveis, evidenciando uma barreira difícil de ser transposta. Em um determinado momento, Black Woman vai parar numa espécie de museu abandonado em que se depara com uma exposição de bonecos em tamanho real vestidos com roupas de militares. O “confronto” com um desses bonecos e a apropriação de sua vestimenta e de seu rifle por Black Woman evidencia o desejo de um “acerto de contas” que o filme sugere.

Ela não está só neste mundo controlado por racistas/exploradores que escravizam os povos originários, obrigando-os ao trabalho escravo. Black Woman percebe que há aqueles que conseguem escapar se disfarçando com máscaras de gás e, numa analogia sem sutileza, pintando o rosto de branco. É o caso de Brown Boy e Brown Girl. Mesmo sem falarem a mesma língua, eles se comunicam através do desejo de juntar forças para enfrentar o sistema.

Diferente de todos os filmes selecionados para a competição da Berlinale, “The Survival of Kindess” é daqueles que costumam crescer em uma revisão, onde se poderá detalhar com mais minúcias a riqueza da fotografia de Maxx Corkindale, o elaborado desenho de som de Adam Galea e as nuances da brilhante interpretação da estreante Mwajemi Hussein, por exemplo. Mas ver o mesmo filme duas vezes durante um festival é um luxo a que poucos críticos podem se permitir. Portanto, o impacto causado à primeira vista pelo filme de Rolf de Heer de forma unânime em nós, jurados da FIPRESCI, só valoriza uma obra com provavelmente mais camadas ainda a serem desveladas.

MARCELO JANOT integrou o Júri da Crítica Internacional (FIPRESCI) no Festival de Berlim

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