Críticas


INDIELISBOA 2023: CINEASTAS NEGROS QUE DÃO CORPO AO PASSADO

11.05.2023
Por Barbara Bergamaschi
A luta política pode se dar pelo encanto?

No mesmo campo do "mal de arquivo" encontramos também o filme SOLMATALUA (Brazil, doc/exp., 2022, 15 min), do realizador paulista Rodrigo Ribeiro-Andrade, diretor revelação que impressionou júri e crítica com o assombroso A morte branca do feiticeiro negro em 2020. O novo curta-metragem, entretanto, é mais leve que o primeiro. Segundo o realizador, com quem conversamos, o filme nasceu de um encantamento com o álbum Rocinha (2021, QTV Selo), de Luan Correia, conhecido como Mbé, com quem produziu uma parceria visual-sonora. Também utilizando o recurso da duplicação e do ralentamento, Ribeiro propõe uma espécie de arquivo-clipe, que encanta as imagens do passado, dotando-as de um novo "ar". O canto mediúnico vem para os males espantar e exorciza o passado sombrio contido nas imagens coloniais. A partir dessa abordagem sensorial, Ribeiro buscou, em suas palavras, realizar "uma justa provocação: retomar as imagens, confrontar a história". Como uma oferenda, este curta fornece uma saída elevada, liberando os corpos negros do sufoco dos arquivos, direcionando-os rumo aos astros.

Exibido lado a lado ao filme de Ribeiro, o longa Maputo Nakuzandza (Brazil/Mozambique, fic., 2022, 60 min) de Ariadine Zampaulo, vale ser mencionado. Também formada pela UFF, Zampaulo produz um gesto de resistência não no passado, mas colocando-se de corpo presente na África contemporânea. Acompanhamos a história caleidoscópica de diversos habitantes da cidade de Maputo: um homem sai de manhã para correr, outro está no transporte público, uma noiva foge do casamento indesejado, uma mulher encontra seu marido com a amante em um bar, um viajante caminha pelas ruelas e monumentos turísticos da cidade. Há, no entanto, um elemento que os une: a voz da locutora da rádio Maputo Nakuzandza (homônima ao título do filme), que parece encarnar a alma da cidade.

Neste falso documentário, que mistura cenas observacionais com encenadas, em que aparentemente pouca coisa acontece, um precioso contra-arquivo se forma. Vemos a alegria das crianças saindo da escola, a sonoridade da língua bantu, as cores dos tecidos, a maestria dos penteados, as belas comidas e frutas no mercado. Uma árvore centenária se esconde em um pátio e divide espaço urbano com os monumentos dos colonizadores portugueses e da FRELIMO, frente de libertação da guerra de independência moçambicana – como numa disputa silenciosa pela narrativa da história oficial. Em analogia aos filmes de vanguarda sobre metrópoles de Walter Ruttmann e de Dziga Vertov, agora é uma "mulher com a câmera" que filma o cotidiano da cidade. Zampaulo constrói, assim, mesmo na narrativa rarefeita, outras representações possíveis dos corpos negros, fora do enquadramento e dos estereótipos do passado opressor. É nas franjas do real, em meio à beleza do prosaico, que a luta política se faz.


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