Críticas


ESTRANHO CAMINHO

De: Guto Parente
Com: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Rita Cabaço
01.08.2024
Por Luiz Baez
Foi ao cinema e encontrou a família

A dialética entre uma experiência indissociável de seu autor e, ao mesmo tempo, profundamente compartilhada por seu público dita os rumos de Estranho caminho, de Guto Parente, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (1). O realizador cearense mistura sua própria história à de David (Lucas Limeira), um cineasta que retorna à cidade natal para a estreia de seu primeiro longa-metragem, mas é assombrado por uma misteriosa figura paterna, fantasmática em seus tons anilados, com quem nunca mais entrara em contato.

Neste sentido, elementos pessoais invadem a narrativa ficcional, seja no uso de fotografias de arquivo, seja na escolha dos personagens – Geraldo é nome tanto do pai de David quanto do de Guto –, seja até mesmo em um objeto cênico – como um livro escrito pelo pai de Parente, Método G, exposto no apartamento em que acontece a maior parte das cenas. O filme, cujo enredo transcorre durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19, traduz com precisão o sentimento coletivo de um tempo circular, que insiste em não passar, vivenciado desde a quebra de parâmetros imposta pela crise sanitária, e agravado pela desesperança diante de um presidente que se recusava a combatê-la.

Com as medidas de contenção decretadas pelo governo do estado e o consequente adiamento do festival de que David participaria, o tempo parece suspenso. Ansioso por lançar sua obra, o jovem custa a crer que a sessão não mais ocorrerá, mesmo em face de todas as evidências, e decide prolongar sua estadia desprovido de quaisquer certezas. Sua busca por reconhecimento artístico esbarra, ainda, na suposta ininteligibilidade de suas criações experimentais, ao menos no olhar de seus amigos de infância.

Em diálogo com a mãe e a companheira, que moram em Portugal, apenas por meio de videochamadas – antecipando assim um modo de sociabilidade característico dos tempos de pandemia –, seu isolamento atinge o ápice quando não pode mais se hospedar em um hotel, fechado após internação do gerente, nem se comunicar com a família, depois de ter seu celular roubado – ou furtado, como sugere a delegada interpretada por Noá Bonoba em sequência na qual o humor, outrora latente, talvez atinja seu ponto mais alto. A ausência de alternativas enseja o tão evitado reencontro. À sua maneira, o enigmático Geraldo (Carlos Francisco) também almeja um legado, uma marca autoral. Passa os dias sentado em frente ao computador escrevendo um enorme texto cujo conteúdo se desconhece de início, mas posteriormente se presume um livro de autoajuda.

Em interações pontuadas por uma atípica burocracia que os dota de contorno cômico – avesso às interrupções de seu trabalho, o idoso substitui um vocabulário afetuoso por termos empresariais, como “variáveis”, “procedimentos”, “fatores”, “proposta” –, tanto filho quanto pai perdem de vista uma oportunidade: este, de colocar em prática os conselhos que redige; aquele, de reconhecer o espectador mais importante desta volta a casa. Nessa relação próxima – porque familiar –, mas afastada – pela falta de convívio –, Guto Parente constrói um mecanismo de transferência por meio do qual o cinema serve não apenas como espelho de seu autor, mas também lugar de encontro.


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