Críticas


UN SILENCE

De: Joachim Lafosse
Com: Daniel Auteuil, Laurent Bozzi, Emmanuelle Devos
16.10.2023
Por Amanda Luvizotto
“O problema do silêncio é que ele fala muito”

Algumas obras, quando vistas no cinema, ganham novas camadas. Durante os 120 minutos de Un Silence, a tensão construída pouco a pouco se torna algo denso, quase “palpável”, não apenas na tela, mas também na sala de exibição. Vivenciar tais sensações e observar a audiência certamente afetou de forma positiva a experiência. Exibido na 25ª edição do Festival do Rio, o novo longa do belga Joachim Lafosse (A economia do amor, Perder a razão) mexe com preconceitos entranhados em nossa sociedade patriarcal e individualista, em que, por vezes, não tomar uma atitude “é” tomar uma atitude, e o silenciar deixa de ser algo omisso, gerando consequências.

O roteiro, assinado por Lafosse em parceria com Chloé Duponchelle e Paul Ismael, traz no centro da trama Astrid (Emmanuelle Devos), esposa de um respeitável advogado (Daniel Auteuil, excelente no papel), cujo trabalho fica em evidência na imprensa local ao atuar como advogado de acusação no caso de duas crianças vítimas de abuso sexual que estão desaparecidas. A comoção em torno do julgamento atinge também Astrid e o filho adotivo do casal, o jovem Raphael (Matthieu Galoux): ambos passam a lidar não apenas com a imprensa acampada na porta de sua casa 24 horas por dia, mas também com a exposição pública de suas vidas. O enredo, baseado no caso real envolvendo o pedófilo Marc Paul Alain Dutroux e o advogado de acusação Victor Hissel, papel de Auteuil, procura desmembrar os fatos e abordar as ações e motivações dos demais envolvidos – ainda que indiretamente – no processo.

O diretor provoca ao mostrar a flexibilização – e suas consequências – de limites éticos e morais que devem ser invariavelmente rígidos, bem como a desconstrução das figuras de autoridade de diferentes ambientes, seja o judiciário em um caso polêmico, seja uma família aparentemente ordinária e funcional. Não há espaço para maniqueísmo na obra; suas personagens não são essencialmente boas ou más, mas sim seres humanos vulneráveis, com defeitos, qualidades e traumas: um abusador não é visto como tal, mas como um homem em tratamento; o abuso passa a ser tratado como um relacionamento; a vítima não é tratada como tal, e sim culpabilizada. E é exatamente essa distorção de papéis e perspectivas que conduz a obra, tornando-a complexa.

Ainda que majoritariamente seja o silêncio e a apatia da personagem Astrid que cause incômodo no espectador, é o seu peculiar senso de moralidade e justiça que suscita repulsa – além de uma indigesta cena de dança, importante ressaltar. Não são poucas as ocasiões em que a incredulidade é a única reação possível diante das ações da matriarca da família. E está em Astrid o ponto mais baixo do trabalho do diretor, pois uma personagem com questões tão substanciais demanda um desenvolvimento melhor que o apresentado, que infelizmente não faz jus à complexidade da trama. No entanto, a competência da atuação de Emmanuelle Devos merece ser citada, ao apresentar uma mulher contida, contraditória e sem os exageros que poderiam torná-la caricata.

Em termos técnicos, o trabalho de som e a edição do filme devem ser elogiados. Mesmo abordando temas tão sensíveis como abuso e pedofilia, não há nenhum tipo de exposição desnecessária ou gráfica, o que mostra a preocupação da produção em escolher exatamente o que ficaria dentro e fora da tela em cada cena. Não são poucos os momentos em que a câmera permanece estática em um ponto do cenário e há uma ação importante acontecendo fora de cena. Para que este extracampo pudesse funcionar tão bem, os efeitos sonoros foram essenciais, criando uma atmosfera de tensão e expectativa sem que fosse necessária a exibição de uma imagem gráfica, com destaque para o embate entre pai e filho no terceiro ato.

Un Silence é um filme cheio de gatilhos, desconfortável e surpreendente, em cuja trama o espectador se perceberá dias depois ainda pensando. A obra impacta, provoca discussões e, sem dúvidas, foi um dos pontos altos da programação do Festival do Rio de 2023.

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