Críticas


ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES

De: MARTIN SCORSESE
Com: LEONARDO DICAPRIO, ROBERT DE NIRO, LILY GLADSTONE
23.10.2023
Por Marcelo Janot
Nos mostra que o tempo de Scorsese ainda é hoje, cheio de inconformismo e com o vigor necessário para fazer valer sua voz e sua arte.

Quando Bill Hale (Robert De Niro) recebe seu sobrinho Ernest (Leonardo DiCaprio) em Fairfax, uma das primeiras formas de apresentá-lo à cultura indígena é recomendando um livro infantil no qual, em uma das páginas, há uma ilustração com um desafio: “você consegue encontrar os lobos nessa figura?”.

Lobos, no sentido figurado, são presença constante na obra de Martin Scorsese. A hierarquia de poder que envolve os microcosmos sociais que ele tão bem retratou está recheada de situações em que o mais fraco a qualquer momento pode ser devorado, reflexo das reminiscências de sua infância e juventude. Nunca confiar em ninguém era uma lição que vinha da herança familiar siciliana e se aplicava como item de sobrevivência em Little Italy, região de Nova York controlada por gângsteres onde ele cresceu.

Lealdade versus traição é, portanto, um tema central em seu filmes. E não poderia ser diferente em “Assassinos da Lua das Flores”, que tem em Bill um lobo em pele de cordeiro, que se finge de amigo do povo Osage para depois eliminá-los. Seus métodos na pequena cidade em Oklahoma não são tão distantes assim do comportamento mafioso de outros chefões de seus filmes ou de Al Capone em Chicago naqueles mesmos anos 20.

A história dos assassinatos cometidos contra os Osage é verídica e foi inspirada pelo livro de David Grann, mais centrado na investigação dos crimes pelo recém-criado FBI, com o agente Tom White (no filme interpretado por Jesse Plemons) em destaque na narrativa. O que Scorsese e o co-roteirista Eric Roth fizeram foi deslocar o protagonismo para o núcleo familiar de Ernest e sua relação com Mollie (Lily Gladstone), cuja família estava sendo dizimada, praticamente fazendo dois filmes: um é o da investigação dos assassinatos, com a entrada em cena do FBI, enquanto nas primeiras 2 horas de duração vemos como os Osage, originários do Kansas e forçados a se deslocar para Oklahoma, se tornaram o povo com renda per capita mais alta nos Estados Unidos graças à descoberta de petróleo em sua terra, e as consequências nefastas para eles. A vida confortável, com luxos como motoristas e empregados à disposição, passou a atrair a ganância alheia – como as terras não podiam ser vendidas, apenas herdadas, homens brancos casavam com mulheres Osage por interesse, alguns com o intuito de matá-las.

Dentro dessa estrutura, o filme deixa de ser apenas mais uma história valorizando o branco agente do FBI como o “salvador” do oprimido. Inclusivo e engajado ao dar visibilidade à injustiça histórica, “Assassinos da Lua das Flores” é mais um capítulo da radiografia da formação da sociedade americana por Scorsese, presente nos embates tribais de “Gangues de Nova York”, na hipocrisia da rigidez aristocrática em “A Época da Inocência”, na busca pelo poder e pelo enriquecimento a qualquer custo em “Os Bons Companheiros”, “Cassino” ou “O Lobo de Wall Street”, pra citar alguns exemplos. A valorização excessiva do individualismo e o desprezo pelo outro, às custas de preconceito, ignorância e violentos conflitos que se perpetuam por séculos, são feridas que o diretor nunca se furtou a tocar.

Aqui ele abre espaço para a complexidade que envolve as relações humanas e as motivações de personagens aparentemente tão díspares quanto Ernest e Mollie. Veterano da Primeira Guerra Mundial, ele chega a Fairfax em busca de alguma oportunidade de trabalho com o tio Hale, rancheiro conhecido como “O Rei”, por sua influência corrupta entre os brancos e a confiança adquirida junto aos Osage. “Eu adoro dinheiro”, é uma das primeiras frases de Ernest para o tio, que não demora a perceber a chance de usá-lo para tentar abocanhar terras dos Osage: aproximando-o de Mollie, primeiro como motorista, depois como marido. Se Ernest é ambicioso e ao mesmo tempo ingênuo para ser facilmente manipulado pelo tio, da parte de Mollie percebemos que, ao mesmo tempo em que abre um flanco ao se sentir genuinamente atraída por Ernest, ela tem consciência de que as sucessivas mortes entre seu povo e sua família precisam ser investigadas. Mas se a terra e o dinheiro pertencem aos Osage, toda a engrenagem do poder local está nas mãos dos brancos – e de Bill.

Em seu processo de pesquisa para o filme, em busca da maior autenticidade possível, Scorsese não quis se basear apenas na apuração do autor do livro, que por mais rigorosa e fiel aos fatos que seja, oferece um olhar branco sobre um drama envolvendo um povo indígena e seus costumes e tradições. As conversas que teve com descendentes dos Osage reforçaram aspectos no filme envolvendo rituais e espiritualidade, momentos em que a narrativa desacelera para a contemplação, como na bela cena em que Mollie sugere a Ernest que perceba os sons da natureza durante uma tempestade – sons que retornam durante os créditos finais, convidando à reflexão.

Mas o que mais chamou a atenção de Scorsese foi a ênfase dos familiares de Mollie dizendo que Ernest realmente a amava. Que tipo de amor era esse, que aparece no filme de forma bem sutil, e não é capaz de absolvê-lo frente ao seu comportamento e às inúmeras evidências de que seu fascínio estava mesmo no dinheiro? Se na obra de Scorsese as mulheres costumam ter pouco espaço, aqui, em parte graças à marcante e delicada interpretação de Lily Gladstone, vemos uma personagem feminina que se destaca e é fundamental para o sucesso do filme, mesmo que saia de cena por um bom tempo na parte final.

Se não tem o mesmo ritmo alucinante de filmes longos como “Os Bons Companheiros”, “Cassino” e “O Lobo de Wall Street”, isso não significa que as 3h26 de duração demorem a passar, muito pelo contrário. A montagem de Telma Schoonmaker, parceira de Scorsese desde o início de sua carreira, a fotografia de Rodrigo Prieto e o ritmo hipnótico ditado pela trilha sonora minimalista do recém-falecido Robbie Robertson acentuam o suspense e colocam o espectador em permanente estado de alerta até o desfecho em que, no lugar da tradicional cartela preta contando o destino de cada personagem, acompanhamos de dentro do estúdio a transmissão de um show de rádio patrocinado pelo FBI, cujo título “A Justiça Venceu” soa um tanto irônico. É ali que um visivelmente emocionado Scorsese faz uma ponta que nos dá a certeza de estarmos diante não apenas de um dos maiores cineastas de seu tempo, mas de que esse tempo ainda é hoje, cheio de inconformismo e com o vigor necessário para fazer valer sua voz e sua arte.

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Outros comentários
    5325
  • Nelson Rodrigues de Souza
    26.10.2023 às 22:04

    Marcelo Janot, Convém verificar a partir de quando Thelma Schoonmaker passou a ser montadora de todos os filmes de Scorsese. Em "Taxi Driver", por exemplo, os montadores foram, segundo o Wikipédia, Marcia Lucas, Tom Rolf e Melvin Shapiro. Já "Touro Indomável" tem edição de Thelma Schoonmaker. No mais sua crítica está impecável.
    • 5326
    • Marcelo Janot
      26.10.2023 às 22:40

      Caro Nelson, no texto afirmo que Telma Schoonmaker é "parceira de Scorsese desde o início de sua carreira", porque ela montou "Quem Bate à Minha Porta?", primeiro longa do diretor. Em nenhum momento digo que ela trabalhou em todos os seus filmes. Obrigado pelo elogio e pela atenção.