Críticas


ANATOMIA DE UMA QUEDA

De: Justine Triet
Com: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Samuel Theis
24.01.2024
Por Maria Caú
O tribunal como peça de ficção

Filme escolhido para a sessão de abertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Anatomia de uma queda venceu em 2023 aquele que é possivelmente o prêmio mais cobiçado do cinema contemporâneo: a Palma de Ouro do Festival de Cannes. A diretora, Justine Triet, foi (pasmem!) apenas a terceira mulher a vencer a láurea, com seu amálgama de drama familiar e suspense de tribunal. O filme se centra em um casal de escritores, Sandra (interpretada por Sandra Hüller, que ficou conhecida internacionalmente por sua parceria com outra diretora, Maren Ade, em Toni Erdmann) e Samuel (Samuel Theis), que vivem isolados em um chalé dos alpes franceses com o filho de onze anos, Daniel, cego por conta de um acidente sofrido quando ele tinha apenas quatro. Esse cenário bucólico e aparentemente perfeito para a composição literária é conspurcado violentamente quando Daniel encontra o corpo do pai, que faleceu após cair do sótão da casa. Como não há testemunhas da tragédia (Sandra alega que estava adormecida, com seus tampões de ouvido, no momento do ocorrido) e a queda parece suspeita aos olhos da polícia francesa, se inicia uma investigação para determinar o que aconteceu com Samuel. Traçam-se três hipóteses possíveis: um acidente doméstico, já que ele se dedicava a reparos na construção; o suicídio de um romancista depressivo, em bloqueio criativo prolongado e que invejava o sucesso da esposa; e, por último, um homicídio, situação em que Sandra, numa relação tumultuosa e violenta com o marido, o teria golpeado com um objeto contundente, para logo depois empurrá-lo do parapeito do sótão.

A partir dessa inquietante premissa, o longa-metragem, malgrado siga a questionável tendência do cinema contemporâneo dito autoral, que, com o encurtamento das janelas de exibição em salas de cinema e a primazia do streaming, produz filmes cada vez mais longos, não desperdiça um único dos seus 152 minutos, construindo um caleidoscópio vertiginoso das relações familiares que antecederam a queda, sem recorrer a flashbacks explicativos e com elementos-chave para a montagem do quebra-cabeça sendo frequentemente sonegados ao espectador. Trata-se, no entanto, não de uma estratégia banal de manipulação do público, mas de um processo que reflete a perspectiva dos membros de um júri, que só têm acesso aos fatos através da mediação das testemunhas e da reconstituição montada pelos peritos e mil vezes repetida, em suas versões conflitantes, pelos advogados de defesa e acusação. O tribunal, Justine Triet parece dizer, é ele mesmo uma bela peça de ficção, com reviravoltas envolventes, momentos que apelam à emoção dos jurados e atores inspirados ou canastrões (é interessante perceber, inclusive, o espaço que a trama dá à hematologia forense, um ramo hoje bastante desacreditado da criminologia).

Neste palco surpreendente, Sandra se move como uma atriz vacilante, já que precisa desempenhar seu papel em uma língua que não domina (alemã, ela não se sente inteiramente confortável falando francês, embora seja claramente mais fluente no idioma do que declara) e parece mal escalada em seu papel de vítima (já que é uma mulher contida em suas emoções, menos “maternal” que o marido, que inclusive educava o filho em casa, e mais bem-sucedida profissionalmente que ele). A segurança de Sandra em relação a um trabalho que ainda é visto por muitos como essencialmente masculino assusta, e em diversos momentos do filme ela afirma que é capaz de escrever em qualquer situação ou lugar, sem nunca ter sofrido com o temido bloqueio criativo, motivo da grande depressão de Samuel. Além disso, espanta que seja Sandra uma mulher livre em suas relações sexuais, que não vê necessidade de se justificar quando age para satisfazer os próprios desejos – neste ponto, o filme inclusive tematiza bastante bem a hipersexualização das mulheres bissexuais. A fim de conseguir cumprir o ritual do teatro do tribunal, Sandra se apoia em seu advogado, Vincent (Swann Arlaud), um antigo amigo com quem ela tem uma relação com certos elementos de tensão sexual e romântica.

Se a diretora mantém com grande habilidade o suspense com relação à culpa de Sandra e à natureza de sua relação com o marido, com quem não dividia mais o mesmo quarto e travava vigorosas brigas, este mistério passa longe de ser o cerne do filme. O que interessa a Trier é justamente explorar as fronteiras de domínio da ficção na contemporaneidade, entendendo o resultado de um julgamento como a consagração de uma estória aos olhos do público – o júri, mas também a mídia que o reporta. Neste contexto, faz-se amiúde alusão à relação entre o universo literário e os tribunais e tematiza-se o modo como a sociedade teima em usar a literatura (e, hoje em dia, o cinema) como confissão biográfica de seu autor. Há uma interessante sequência em que a acusação lê trechos de um dos romances de Sandra, justamente uma passagem em que uma mulher fantasia a morte de seu marido, para evidenciar a culpa da autora – uma vez que ela era capaz de imaginar tal ato, por que razão não o realizaria? Neste ponto, pululam diversas referências, desde o famoso caso do processo contra Flaubert, em que ele, se defendendo das acusações de ofensa à moral francesa por conta de uma obra de ficção, teria dito “Madame Bovary sou eu”, à primeira minissérie de true crime a explodir nos Estados Unidos, The Staircase, que segue o julgamento real de um romancista acusado de ter matado a mulher, durante o qual parte de seus trabalhos de ficção é apresentada como “prova” de sua culpa.

A forma como a ficção se imiscui na vida já havia sido tematizada pela diretora em uma obra anterior, Sibyl, mas aqui este mote ganha corpo de forma muito mais amadurecida. A porção de tribunal, que compõe a maior parte do filme e se passa após uma passagem de tempo de um ano, vai paulatinamente ganhando em tensão, produzindo um sufocamento que deixa o espectador inquieto, com Sandra cada vez mais presa na claustrofobia do seu personagem (obrigada a continuar vivendo na casa e na cidade que ela jamais amou, mas para as quais aceitou se mudar para agradar ao marido). Isso posto, é uma escolha muitíssimo acertada o fato de que Samuel pouco aparece e que todos os flashbacks são sempre postos em dúvida, já que representam versões possíveis do que ocorreu, sem nunca ter dimensão de verdade (um feito e tanto para o cinema, em que o que é visto em geral é tomado como uma fatia inequívoca da realidade diegética – a não ser em casos como o sonho, a alucinação ou a enunciação de um ponto de vista delimitado por um observador ou narrador específicos). Aqui, temos uma versão, um ponto de vista de um narrador não confiável que esconde sua face, mas que se confunde com a opinião pública e com as elaborações possíveis do público.

À medida que até mesmo Daniel e Vincent vacilam ao defender a inocência de Sandra, o filme aprofunda sua tese: quando não temos os elementos para estabelecermos, sem qualquer dúvida, a verdade, só nos resta optar pela versão que nos convence. O sucesso de uma das partes sobre a outra no espaço do tribunal do júri, assim como o sucesso do cinema com o público ou a crítica (e também o sucesso do escritor), está antes de tudo em lograr produzir sobre o público-alvo o arrebatamento de uma estória que comove e engaja.



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