Críticas


VAMPIRA HUMANISTA PROCURA SUICIDA VOLUNTÁRIO

De: Ariane Louis-Seize
Com: Sara Montpetit, Félix-Antoine Bénard, Noémie O'Farrell
30.10.2023
Por Maria Caú
Um filme de formação vampiresco

Cinéfilos e críticos de cinema têm técnicas muito particulares para selecionar os filmes a assistir ao longo de um festival, principalmente no caso de festivais internacionais, como a Mostra de São Paulo, que contam facilmente com mais de três centenas de filmes, espalhados por cerca de duas semanas de programação. Como assistir a todos esses filmes é humanamente impossível, elaboram-se toda sorte de estratégias “infalíveis” para determinar as escolhas. Em todos os quesitos, quase nenhum consenso. Uns resolvem assistir a até seis filmes por dia, arriscando com as sessões que atrasam e o fatal cansaço – você os reconhece por estarem sempre correndo, meio descabelados, comendo um sanduíche na sala ou entrando atrasados e esbaforidos numa sessão. Eles parecem não perceber que perdem parte do que existe de mais rico num festival: os encontros e debates que ele promove.

Para aqueles do meio do caminho, que assistem a uma média de dois ou três filmes por dia, a seleção dos títulos é ainda mais capital. Surge inevitavelmente a questão: o que priorizar? Alguns dizem que é necessário ver os filmes com legendagem eletrônica, já que este costuma ser o sinal de que eles ainda não encontraram uma distribuidora no Brasil. Outros preferem assistir logo aos sucessos de festivais estrangeiros, para não perderem o calor da discussão, ou às novas obras de diretores cujo trabalho apreciam. Há também aqueles que escolhem as sessões com convidados, para terem a oportunidade de ouvir os realizadores. Uns eliminam filmes pelo simples fato de que eles já estão disponíveis em plataformas ilegais de download e falam disso com tanto orgulho que acabam por parecer, paradoxalmente, não se importar com a experiência do cinema. Muitos escolhem cinematografias periféricas, enquanto os mais corajosos elegem filmes apenas pelas sinopses.

Neste panorama, muitas vezes são negligenciados dois tipos específicos de filmes, que compartilham as poucas chances de estreia nos cinemas comerciais do Brasil. De um lado, temos os documentários (quantos documentários estreiam nas salas de cinema por ano?). De outro, as produções de gênero de cinematografias menos dominantes, em especial os filmes considerados “menos sérios”, que estariam bem encaixados em sessões da meia-noite. A junção entre terror e comédia, então, parece ser particularmente desprezada. Assim se perdem pequenas joias com pouquíssimas chances de entrarem em circuito comercial, como o delicioso Vampira humanista procura suicida voluntário. Um daqueles casos em que o título do filme já dá conta do storyline, o longa canadense (passado em Montreal e falado em francês) segue Sacha, uma vampira “adolescente” (com seus 68 anos) que, a partir de um trauma da infância, ganhou uma empatia incomum para sua espécie e se recusa a matar humanos para se alimentar, dependendo das bolsas de sangue que seus pais lhe fornecem. Querendo, como pais conscientes e preocupados, preparar a filha para uma vida independente, os pais de Sacha decidem que ela deve se mudar para a casa da prima Denise (Noémie O’Farrell), que ficará incumbida de lhe ensinar táticas para caçar humanos. O plano, no entanto, começa a ir por água abaixo quando Sacha considera a possibilidade do suicídio, deixando de se alimentar de sangue ou até mesmo consumindo alimentos destinados a humanos, o que pode ser fatal para os vampiros. Um anúncio de uma espécie de centro de valorização da vida faz com que Sacha busque uma terapia em grupo para pessoas em depressão, ambiente em que ela conhece Paul, jovem filho de mãe solteira, que não tem amigos, sofre bullying no colégio e planeja se matar. Quando as vidas desses dois “adolescentes” com tendências suicidas se cruzam, Paul se oferece para o abate, mas aos poucos os laços entre os dois se aprofundam, tornando a decisão de Sacha cada vez mais difícil.

Este filme de formação vampiresco prima pelo charme, se apoiando no enorme carisma do casal de protagonistas, interpretados por Sara Montpetit e Félix-Antoine Bénard. O muito bem amarrado roteiro, assinado pela diretora, Ariane Louis-Seize, em parceria com Christine Doyon, traz diálogos inteligentes, plenos de humor, e reviravoltas espertas (incluindo um desfecho apoteótico). A direção de arte e a caracterização são pontos altos, dando aos vampiros e suas residências uma leve repaginação, sem que eles percam seus elementos clássicos bastante reconhecíveis. A trilha sonora, encantadora, pontua a narrativa com precisão. A forma como os pais de Sacha se assemelham a um casal completamente banal, que vive discordando sobre a forma de criar a filha (enquanto estão de fato falando sobre ensinar alguém a matar), rende momentos hilariantes. Além disso, o filme toca em assuntos muito importantes da pauta contemporânea, como depressão na adolescência, suicídio e até mesmo eutanásia, de forma absolutamente leve. É um daqueles filmes deliciosos, que você não vê passar. Um filme que certamente não vai encontrar espaço no circuito comercial, especialmente por vivermos um momento de afirmação do terror como “gênero sério” que infelizmente passa por sua dissociação quase completa do ambiente da comédia, ainda considerada um gênero “menos nobre” (tanto pior se estamos falando de comédia romântica adolescente ou de comédias centradas em famílias disfuncionais). Paradoxalmente, a comédia e o terror perdem mais do que o drama na transposição da experiência do cinema para as exibições caseiras ou individuais (a experiência de rir junto é muito mais intensa e reconhecível do que a de verter lágrimas, e um filme de terror é certamente mais assustador no cinema, com condições de som e projeção propícias a estabelecer o clima correto). Resta torcer para que possamos encontrar Vampira humanista procura suicida voluntário numa sessão da meia-noite por aí.

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