Críticas


AFIRE

De: Christian Petzold
Com: Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel
03.11.2023
Por Maria Caú
Quando a chama da literatura imprime à violência da realidade um sentido apreensível

Afire parte de uma situação dramática hiperutilizada nas narrativas fílmicas sobre criação literária. Um romancista aceita o convite de um amigo para passar alguns dias na casa de praia de sua família no mar Báltico e, ali, desfrutar as condições ideais para se inspirar e finalizar seu mais novo livro. Lá chegando, os dois encontram a casa já alugada a uma jovem algo misteriosa, um ambiente cheio de distrações, claramente não propício à escrita. Esse embate entre a necessidade de isolamento do escritor e a vivacidade da hóspede vai, como é comum nesse estilo de narrativa, alterar os caminhos do romance a ser finalizado.

A premissa pode ser considerada um lugar-comum das narrativas fílmicas que tratam do processo literário, que geralmente partem da figura de um autor literário em crise criativa, buscando isolamento para escrever, que de repente se vê num ambiente inóspito para o florescimento de sua criação, mas que aguça sua curiosidade. O diretor e roteirista Christian Petzold já havia demonstrado sua sofisticada afinidade com o universo literário no brilhante Em trânsito, de 2018, que inclusive conta com um jogo intricado de narração (com um narrador que a princípio parece extradiegético, mas aos poucos se revela testemunha dos acontecimentos). Em um primeiro momento, o personagem central de Afire também soa como o estereótipo do jovem escritor em crise: Leon (Thomas Schubert) é autocentrado, classista, preocupado apenas com o trabalho e a iminente visita de seu editor, que virá ter com ele sobre o progresso do manuscrito. No entanto, assim que Felix (Langston Uibel), o amigo, filho da dona da casa, o deixa a sós com seu romance, Leon se vê tomado pela paralisia completa e se entrega à procrastinação.

Embora o ponto de partida não seja original, o desenvolvimento certamente surpreende. Em primeiro lugar, a amizade entre Leon e Felix, um fotógrafo gay que está ali para terminar seu portfólio, revela uma intimidade um tanto belicosa que dá enorme profundidade aos dois personagens (e naturaliza a amizade entre um homem gay e um homem heterossexual, tema ainda incomum no cinema). Além disso, Nadja (interpretada pela sempre excelente Paula Beer, atriz que tem uma expressiva parceria com Petzold) se recusa a se prestar ao papel da musa misteriosa e emerge como uma personagem solar, segura de si, empática e, principalmente, ocupada com seus próprios interesses e distrações. Leon nota Nadja muito antes que ela lhe dispense atenção e a captura a certa distância, incomodado com seus encontros sexuais no quarto ao lado com o salva-vidas Devid (Enno Trebs), aventuras que não o deixam dormir, e bisbilhotando sua vida e seus afazeres, incluindo os rastros deixados pelos objetos da moça, espalhados pela casa. Se Leon vê Nadja enquanto enigma, no entanto, isso diz mais sobre o temperamento ensimesmado e ególatra do escritor, incapaz de estabelecer uma relação mais direta com a moça. Essa atitude contrasta com a personalidade aberta e simpática da jovem, que inclusive não demonstra qualquer constrangimento quando Leon menciona ter se incomodado com seus barulhos noturnos e tenta se aproximar do romancista. Mais tarde, quando Leon descobre mais elementos sobre o passado de Nadja, sua humilhação é justamente ter subestimado as conquistas da moça, já que a fantasia diz que as musas apenas inspiram, elas não realizam nada.

Também a casa e o refúgio paradisíaco em que ela se insere se mostram ambientes ambivalentes. Assim que Leon e Felix chegam à região, ficam sabendo que o local está mais vazio do que de costume, já que as proximidades estão sendo gradativamente evacuadas por conta dos incêndios florestais da estação seca, que parecem estar se aproximando aos poucos, ainda que muitos garantam que os ventos que vêm do mar não deixarão que o fogo se espalhe por ali (o fogo e a água estão em constante embate ao longo da narrativa). E aqui é interessante notar que Petzold escolhe não detalhar a beleza da região, deixando o mar quase sempre à distância, um mar feio, de tons esverdeados escuros, muitas vezes parcialmente encoberto pelo mato crescido da orla, e que parece, aqui e ali, ameaçador, incluindo nas noites em que apresenta a bioluminescência (fenômeno noturno que dá ao mar um brilho luminoso, como se água e fogo então se unissem). Em realidade, mais do que signo de liberdade, o mar atua no longa como uma barreira que delimita o raio de ação dos personagens, acuados entre os dois elementos: o fogo, que se aproxima, e a água, cujo movimento constante eles observam (neste contexto, é instigante que Felix passe a se dedicar justamente a uma série de fotografias de pessoas que olham o mar, em estado de contemplação).

Nesta casa de veraneio, onde os personagens experimentam uma espécie de liberdade claustrofóbica, os quatro jovens vão se enredando numa espécie de quadrilátero amoroso nunca inteiramente concretizando, mas cujas tensões mimetizam a aproximação certeira do fogo e se transformam com a visita do editor, um homem imerso em graves preocupações e que reconhece a casa como um refúgio temporário para seus problemas. Mas há uma outra explosão por vir: a da literatura, com a conclusão do romance de Leon, cujo título, Club Sandwich, surpreende a todos que o ouvem por ter uma leitura jocosa muito diversa da forma como o escritor se comporta e trata aqueles à sua volta, com um permanente ar de superioridade (intelectual, mas também moral), que vai aos poucos ruindo e se relevando uma enorme farsa.

Afire, vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim de 2023 e do Prêmio da Crítica da Mostra Internacional de São Paulo, é uma dessas narrativas que assombram porque propõem uma profunda investigação da capacidade do fazer artístico de contaminar e ressignificar as relações humanas, preenchendo não ditos e deslindando as interrogações mais pungentes, que brotam em momentos de grande e inesperado estresse emocional. O desfecho transmuta em personagens literários Leon e Nadja. O nome de ambos já transita pelo espaço da literatura: Nadja é o nome de um famoso romance vanguardista de Breton, cuja heroína foi inspirada em uma dançarina chamada... Léona; e Leon (ou Liev) é o prenome de Tolstói, um dos maiores romancistas de todos os tempos. Quando o romance (em ambos os sentidos da palavra, a paixão e a ficção literária) os engolfa, o filme tematiza de modo brilhante a capacidade da ficção literária de lidar com a dureza e a opacidade da experiência real e, sob a chama fiel da imaginação, derretê-la, desmembrá-la, até que a eterna violência do acaso e da morte possa, uma vez cristalizada em literatura, ganhar algum sentido possível.





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