Críticas


ATIRARAM NO PIANISTA

De: FERNANDO TRUEBA e JAVIER MARISCAL
Com: JEFF GOLDBLUM (voz), ANGELA RABELO (voz para Susana de Moraes), TONY RAMOS (voz), VINICIUs DE MORAES, (cenas de arquivo), TOQUINHO (idem)
04.11.2023
Por Luiz Fernando Gallego
De uma tragédia individual kafkiana, o filme dimensiona o que pode ser uma ditadura em que direitos básicos deixam de existir quando qualquer um pode sofrer perseguições inimagináveis sem garantias legais mínimas.

Dono de uma carreira, no máximo, mediana, Fernando Trueba atinge seu melhor resultado com o filme ATIRARAM NO PIANISTA (não confundir com o clássico da Nouvelle Vague “Tirez sur le pianiste” de François Truffaut, 1960).

Trueba já mostrou seu entusiasmo com a música da América Latina em “Chico e Rita” (2010) e no musical/documentário “Blanco y Negro” (2003) com Diego Cigala e Bebo Valdés, músico que reaparece no novo filme em forma de animação. Aliás, “Chico e Rita” também foi feito como animação, formato curiosamente escolhido para narrar uma tragédia como a do pianista brasileiro Tenório Jr., “desaparecido” na Argentina da sangrenta ditadura militar.

Bem desenvolvido, o filme começa de modo solar, mostrando um Rio de janeiro, talvez um pouco idealizado (ou nem tanto) - na época do surgimento da Bossa Nova e de sua, digamos, 'segunda fase', a do “samba-jazz” dos trios piano-baixo-bateria que se multiplicavam nos “clubes” do chamado ‘Beco das Garrafas’, ganhando a capital São Paulo dos programas musicais de TV e em dezenas e dezenas de vinis daqueles anos: Tamba Trio, Zimbo Trio, Sansa Trio, Jongo Trio, Sambalança, Milton Banana, Edison Machado, Do Um Romão, Sergio Mendes, Som3, rio 65 trio, Bossa Três, dentre outros.

Deste início luminoso e sedutor, Trueba e o co-diretor Javier Mariscal vão, gradualmente, passando ao período de trevas que dominaram as Américas através de golpes militares e instalação de diversas ditaduras sangrentas no hemisfério sul com apoio nem sempre tão oculto do hemisfério norte - ou seja, os governantes dos Estados Unidos.

A habilidade do roteiro está em introduzir insidiosamente os trechos obscuros em meio ao seu terço inicial sedutor, musical e quase utópico - e daí, provocar a identificação da plateia com o absurdo sequestro de um pianista sem nenhum engajamento político (e mesmo que o tivesse), levado a “interrogatórios” de extrema violência e a um “desaparecimento” até hoje não assumido pelos que participaram dos desgovernos ditatoriais, tanto argentino como brasileiro de então.

De uma tragédia individual kafkiana, o filme dimensiona o que pode ser uma ditadura em que direitos básicos deixam de existir quando qualquer um pode sofrer perseguições inimagináveis sem garantias legais mínimas. É assim, que o filme adentra no covil da morte que foi o sinistro centro de detenção de nome “ESMA - Escola Superior de Mecânica da Armada da Marinha Argentina” por onde passaram em torno de cinco mil (!) prisioneiros, quase todos “desaparecidos” (!!!) depois de lá terem entrado e nunca mais vistos vivos. A "Operação Condor" que uniu de modo perverso os ditadores militares do Brasil, Argentina, Chile e outros mais também é explicada direitinho para quem não conhecer o horror que foram tais terrorismos de Estado.

Com entrevistas feitas ao longo de quase vinte anos por Trueba, algumas com pessoas que já se foram (como Susana de Moraes, filha de Vinicius, também falecido), outras com nomes importantes e ainda atuantes na MPB como Edu Lobo (Tenório participou de seu disco conhecido como ”Missa”, de 1973), Chico Buarque (também tocou piano no disco com as músicas de Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça censurada “Calabar”), Gil, Caetano, Milton.

Parentes e amigos também narram as consequências do “desaparecimento” do músico que até hoje deixa sua esposa fora da categoria de “viúva” e sem nenhum apoio ou reparação como puderam ter outras vítimas indiretas ou diretas de tais ditaduras perversas.

É tentador pensar que poderiam entender melhor o que é o autoritarismo ditatorial militar se este filme fosse visto pelo mar de pessoas que apoiaram (e ainda apoiam) o pior que o Brasil já teve em matéria de governo eleito democraticamente. Embora constatemos que a crença absoluta em narrativas fake não se interessa em nada pela verdade histórica objetiva.

P.S. Um equívoco é a citação atribuída a Elis Regina sobre Chet Baker ter influenciado seu modo de cantar quando Elis se dizia mesmo herdeira e influenciada por Ângela Maria, antípoda do modo de cantar do jazzista americano. Chet Baker era inspiração para Nara Leão, Roberto Menesacal (alguns dizem que João Gilberto também escutou Chet Baker antes de surgir como "papa" da BN) e outros mais ligados à Bossa Nova - que não era a "praia" de Elis.

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Outros comentários
    5334
  • Maria Celia Sequeiros Jaráuta
    05.11.2023 às 17:19

    Muito boa crítica, mais me motiva do que eu já estsva em ver este filme. Espero conseguir chegar ao Rio em tempo hábil para assisti-lo. É verdade - o modo de cantar de Elis Regina em nada se assemelhava ao de Chet Baker - estilo melancólico, down ! Dele gosto muito é de seu sax tenor e só. Não gosto dele cantando.