Críticas


CULPA E DESEJO

De: Catherine Breillat
Com: Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin
27.11.2023
Por Mari Dertoni
A investigação do desejo feminino sob o olhar minucioso de Catherine Breillat

Como a tradução do título sugere, “culpa” e “desejo” são dois sentimentos que se relacionam. Podemos falar aqui de qualquer tipo de desejo, sexual ou não; muitas vezes o pilar da nossa vontade pode se converter em culpa ou na ausência dela e se tornar alvo de julgamentos. De acordo com Schopenhauer, a vontade é uma força incontrolável que move o mundo, o princípio fundamental da natureza. Força essa que adquire características específicas nos seres humanos, pois estamos existencialmente submetidos à pressão universal da vontade (desejo). Se nosso desejo vai na contramão do que é considerado aceitável ou correto socialmente, é nosso “dever” como ser social reprimi-lo, trabalhar para que ele não seja maior do que a ética a ponto de ferir o outro. A noção de “culpa” se aplica como um agente regulador, uma régua a traçar limites de até onde podemos ou devemos seguir com nossos desejos.

Catherine Breillat, diretora francesa conhecida por trabalhar com temas provocantes, chocantes e polêmicos, volta a fazer cinema depois de dez anos sem lançar filmes. Culpa e desejo é baseado no longa dinamarquês Rainha de copas (2019), dirigido por May el-Toukhy. Os dois filmes utilizam o mesmo plot, o mesmo núcleo de personagens principais, mas se distanciam bastante no tom e na linguagem que cada diretora escolhe trabalhar. Não é de se surpreender que a atenção de Breillat se volte para a história inicialmente contada pela diretora e roteirista dinamarquesa: uma advogada beirando os 50 anos de idade (Anne), especializada em casos de abuso sexual em menores de idade, casada e mãe de duas meninas, se envolve sexualmente com seu enteado de apenas 17 anos (Théo). A essência da polêmica está engendrada na trama, mas o que mais interessa à diretora francesa, que passa por cima de seu estilo de fazer um cinema sempre chocante, é a natureza do desejo.

A relação de Théo com a família de seu pai começa aos poucos, por meio de uma aproximação naturalmente neutra e amistosa, em uma mesa de jantar, dentro de uma casa com o padrão de uma família estabilizada financeiramente e que tem suas ocupações cotidianas abaladas por sua chegada. O adolescente problemático precisou se afastar da mãe e passar a viver com Pierre, um pai ausente e que não teve participação ativa em sua criação. Théo é bem recebido por todos, inclusive por Anne, sua então madrasta, que faz de tudo para que ele se sinta confortável, mantendo uma proximidade que se estende para além da presença de Pierre e das duas irmãs pequenas.

Uma relação bilateral vai se formando em paralelo à relação familiar. No filme dinamarquês os fatos parecem mais gritantes e expositivos, tanto nos diálogos, quanto em cenas mais explícitas. Inicialmente percebemos que a aproximação dos dois amantes se dá por meio de uma desconexão com os demais, um sentimento de não pertencimento e vontade de fugir de alguma maneira daquela realidade. Anne está em um casamento que caiu na rotina e Théo se sente um intruso em um território estranho para ele. Em Rainha de copas, Anne liga um som bem alto e começa a dançar “Tainted Love” no meio de uma confraternização com amigos de Pierre, na qual não consegue se encaixar, se isolando e achando uma desculpa para sair com Théo para comprar cigarros. Em Culpa e desejo, eles simplesmente saem enquanto Pierre está ausente e tudo resulta na mesma cena: os dois em um bar bebendo cerveja e conversando não mais como família, mas como homem e mulher. No filme de el-Toukhy, Anne beija o menino na boca, o deixando atordoado; no de Breillat eles apenas flertam e conversam coisas mais íntimas.

A construção do ritmo da sedução é diferente. As cenas sexuais também apresentam tons bem distintos; Breillat é menos expositiva e mais preocupada em criar planos que parecem pinturas ou cenários um pouco mais afetivos, como quando os dois se amam no chão, na terra crua à meia-luz, com uma iluminação com nuances renascentistas. El-Toukhy já nos faz observá-los no quarto de Théo, os dois em uma cena de preliminares bastante explícita e depois Anne se colocando de quatro, impondo seu desejo a uma criatura vulnerável que irá, sem sombra de dúvidas, seguir seus instintos e cooperar com ela. Breillat é uma diretora que trabalha com questões ligadas ao corpo feminino e às mazelas primordialmente desconfortáveis da busca pelo prazer ou por aceitação como em Pra minha irmã (2001) ou em Romance X (1999), que beira o soft porn. Ela não tem pudor em mostrar corpos nus e a relação das pessoas com seus objetos de desejo.

Em Culpa e desejo, por mais que as imagens sexuais estejam presentes, é no diálogo que a diretora aponta as contradições do lugar de prazer de Anne. Em uma conversa na cama com Pierre, ela conta que se interessa e se atrai desde nova por corpos envelhecidos, por rugas e marcas do tempo, confessando ter vivido experiências precoces com homens mais velhos. Ao mesmo tempo, Anne atende uma adolescente vítima de abuso sexual, a alerta sobre a culpabilidade que geralmente recai sobre a vítima nesses casos e a enorme pressão que ela enfrentará para que se declare que o ato foi consensual. A atração de Anne por Théo, um menino que ainda não assume a forma de “homem”, não é algo que tenha explicação ou sentido, ela apenas existe instintivamente (como bem ilustra o conceito da vontade de Schopenhauer), se faz presente e urgente em um nível que passa por cima da razão e dos padrões.

A postura de Anne é impiedosa e ela não pensa duas vezes em usar a vantagem da experiência que tem a seu favor. Dessa forma, Breillat nos faz olhar muito mais para o desejo do que para a culpa em seu filme, nesse jogo imoral para se satisfazer. Há grande ironia com a justiça dos fatos, a relação da protagonista com a lei e com os casos de abuso que se convertem em uma grande poça de lama e hipocrisia na qual todos acabam afundando: a família, antes em harmonia, que sofre com a chegada repentina e a saída brusca de Théo, o marido que entra em uma via-crúcis de desconfianças e manipulações; e principalmente Théo, o mais vulnerável de todos, usado e reduzido a um mero instrumento de prazer.

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