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ZONA DE INTERESSE

De: Jonathan Glazer
Com: Sandra Hüller, Christian Friedel, Johann Karthaus
20.02.2024
Por Maria Caú
Sobre espectatorialidade e tempestades elétricas

Os críticos de cinema tradicionais sempre optaram por eliminar as particularidades da experiência de assistir a um filme do texto final sobre ele. Quando muito, fala-se das condições de projeção, em especial quando diante de uma obra rara ou restaurada, uma sala recém-inaugurada, uma (hoje em dia rara) exibição em película ou alguma outra situação bastante especial (exibições em formatos não convencionais, novos sistemas de som, sessões ao ar livre etc.). A caixa preta tradicional é feita para ser esquecida. Se Pauline Kael era conhecida por abordar o clima da sala de cinema, descrevendo a temperatura do público e pormenorizando suas reações, sempre tematizando a forma como a experiência corpórea do filme impacta sua recepção, essa é certamente uma das características que a fizeram ter uma voz tão particular no âmbito da crítica e, ao mesmo tempo, atingir os brios do leitor.

A verdade bastante óbvia é que as condições da atividade espectatorial impactam na recepção do filme. Ainda que o crítico queira apagar de seu texto o filme enquanto experiência corpórea viva, em prol da ideia do filme como impressão e movimento puramente intelectuais, é inegável que as particularidades da exibição e o papel ativo do espectador neste contexto têm peso. Um exemplo bastante claro é este: a grande maioria das pessoas tende a ter reações mais intensas a qualquer filme visto no ambiente da sala escura. Os motivos são muitos e claros. Em primeiro lugar, o ato de ir ao cinema envolve um engajamento e (por que não dizer?) um risco muito maior. Você precisa sair de casa, comprar ingressos (gastar dinheiro) e assistir ao filme com razoável atenção por toda a sua duração e de uma só vez. Mesmo nos tempos desatentos em que vivemos, atos como ir ao banheiro ou simplesmente abandonar um filme permanecem como interditos para a maior parte do público. Além disso, a grande maioria das pessoas tem o hábito de ir ao cinema acompanhada e, ao sair da sala, conversar minimamente sobre o filme. Todas essas ações corriqueiras, aliadas ao aparato de exibição (certamente incomparável ao ambiente doméstico), fazem com que a reação a um filme seja potencialmente mais intensa e que uma obra seja em si mais memorável quando assistida no cinema. Além disso, a experiência coletiva da sala escura, muito embora possa ser bastante desagradável (mais um risco assumido), modifica a percepção de um filme, principalmente no que se refere às obras que provocam reações mais intensas, reconhecíveis e contagiantes do público, como as comédias ou os filmes de terror. Durante o clima de um festival, essa quase histeria maravilhosa, a intensa atmosfera também reclama paixões.

Assim, se a maioria dos críticos elimina a feição do filme como experiência de seus textos, deve-se sempre questionar: “Será que foi uma boa ideia ver cinco filmes seguidos?”; “Será que a cadeira desconfortável não fez o filme parecer mais longo do que é?”; “Será que eu deveria ter visto uma obra que precisa tanto de um som apurado no meu computador?”. De minha parte, não vejo filmes em telas pequenas, não assisto a cinco filmes no mesmo dia jamais (e acredito que essa maratona deixa de dar às obras o espaço de reflexão de que elas precisam para completar seu movimento) e tento sublimar (tanto quanto posso) cadeiras desconfortáveis, cansaço extremo, uma plateia desagradável, um sistema de som longe do ideal. No entanto, sempre há limites.

As condições em que assisti a Zona de Interesse pela primeira vez, na Mostra de São Paulo de 2023, foram mais do que canhestras. A exibição se deu num tal Espaço Petrobrás da Cinemateca Brasileira, um ambiente coberto montado numa área externa da cinemateca, com cadeiras de ferro sobre uma espécie de tablado e algumas espreguiçadeiras nas primeiras fileiras. Por conta da disposição das cadeiras, ler a legenda eletrônica (do filme falado em alemão) só era possível se você ficasse esticando o pescoço a todo tempo, o que, mesmo para uma pessoa relativamente alta como eu, gerou um torcicolo certo ao fim da sessão. O ambiente não tinha nenhum isolamento de som (nenhum mesmo), o que já era de se esperar – o que não era de se esperar é que as pessoas ficassem o tempo inteiro transitando pelos corredores contíguos e falando sem parar (num filme em que o silêncio tem muito valor). Além disso, como as divisórias eram de plástico transparente, o espaço era luminoso demais para um filme de poucos contrastes de cor. De repente, não mais que de repente... começou uma tempestade. A tela improvisada balançava de modo a criar imagens inteiramente não previstas pelo diretor e pelo fotógrafo (algumas até bem bonitas). O vento ruidoso fez com que chovesse em parte do público, criando uma pequena comoção. Em dado momento, eu olhei para cima e pensei como era estúpido meu amor pelo cinema, já que era esse sentimento que me fazia continuar ali, embaixo de uma estrutura de plástico e metal, no meio de uma tempestade de raios e trovões.

Se Zona de Interesse começa com vários segundos de tela preta e um som angustiante, eu levei apenas uns cinco desses para entender que eu precisaria ver o filme novamente para lê-lo minimamente bem. Naquele dia, pelo absurdo da experiência e talvez pelo pouco que eu pude captar do projeto estético e narrativo de Jonathan Glazer, o filme me pareceu excelente. Talvez tenham sido os raios e os trovões e o absurdo de lidar com o que me soava como uma instalação de museu (impressionante, apesar de involuntária) sobre a barbaridade do Holocausto. Há poucos dias, numa revisão, o filme não resistiu. A premissa é mais do que instigante: o comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, vive uma vida bucólica com sua mulher, Hedwig, e seus cinco filhos numa casa mimosa, muro a muro com o campo. Também é interessante o desejo de criar planos que emulem o senso de simetria estéril e angustiante do Terceiro Reich, propositadamente se afastando dos personagens em planos de conjunto que os retratam sempre em relação ao ambiente da charmosa villa em que moram, como se temendo uma aproximação maior (o que dá força a um dos únicos closes do filme, justamente revelando o rosto de Rudolf em ação dentro do campo).

Ainda assim, a sensação é de que o filme se esgota em uns vinte minutos e paulatinamente vira um veículo para as experimentações estéticas altamente questionáveis do diretor, incluindo: sequências em efeito negativo, um fade para o vermelho, a inserção de uma sequência documental e um design de som tão opressor quanto bastante óbvio e progressivamente irritante. Por fim, tem-se a certeza de que nove entre dez críticas à obra vão citar um conceito de Hannah Arendt que sete destes nove críticos não terá lido, o que fará com que pelo menos quatro o usem incorretamente. De fato, a vivência da família Höss às margens do campo nada tem da “banalidade do mal” de que fala Arendt; ao contrário, a vivência deles é justamente a da completa e entusiástica adesão ao projeto nazista. No fim das contas, o desafio do filme é difícil: retratar o mal tão apaziguado e orgulhoso de si – neste contexto, humanizar ou vilanizar os personagens são duas estratégias igualmente frágeis. Por fim, o filme escolhe um caminho do meio que soa, ele sim, banal: mostrar o amor de Rudolf por seu cavalo ou a dedicação de Hedwig à família enquanto revela o comandante revisando as plantas das câmaras de gás ou a boa mãe ariana ameaçando mandar matar a emprega judia. De fato, os momentos mais impactantes de Zona de Interesse acontecem justamente quando Rudolph e Hedwig se deixam absorver por seus projetos nazistas, seus designs particulares e plenos de um senso vazio de retidão: o comandante desenhando todos os detalhes da “solução final” e a esposa explicando para a mãe como planejou o jardim para que ele cresça e oculte as silhuetas de Auschwitz. Em meio ao projeto estético e narrativo confuso de Glazer, esses momentos se destacam – e, posso dizer, parecem ainda mais potentes ao som da tempestade elétrica que o filme, em si, não traz.

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