Críticas


TRILOGIA DAS CORES

04.04.2024
Por Marcelo Janot
Há três décadas Kieslowski concluía sua obra-prima e se despedia do cinema

Com a derrocada do comunismo no leste europeu a partir de 1989, a atmosfera política foi sendo deixada de lado na obra do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, como visto em “A Dupla Vida de Veronique” (1991). Sobretudo a partir deste filme, que marca o início de sua fase francesa, a combinação de poesia visual e elementos metafísicos se estabelece cada vez mais como uma marca registrada de Kieslowski.

Portanto, ao topar a sugestão de seu co-roteirista Krzysztof Piesiewicz para, na sequência, fazerem uma trilogia baseada nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa, por que não deixar de lado como esses conceitos foram aplicados no campo social e político e focar no aspecto humano, íntimo e pessoal? Os três filmes foram rodados num curto espaço de tempo (incríveis 9 meses entre setembro de 1992 e maio de 1993), e para cada um ele chamou um diretor de fotografia diferente, como já havia feito com o “Decálogo”, no intuito de melhor traduzir essa atmosfera.

As cores já não pertencem mais à bandeira de um país, e sim a estados de espírito. Não refletem algo físico, mas sim como indivíduos vêem e se relacionam com o mundo que os habita. Assim, em “A Liberdade é Azul” o diretor de fotografia Slawomir Idziak volta a recorrer a filtros, elementos que marcaram de forma tão distinta “Não Matarás”, com sua atmosfera opressiva, e “A Dupla Vida de Veronique”, um convite ao sublime, onde o mundo parecia mais bonito do que realmente é.

No caso de “Bleu”, a cor invade a tela, não apenas via objetos de cena, mas para refletir a melancolia da personagem de Juliette Binoche, enquanto o uso do branco em “A Igualdade é Branca” por Edward Klosinski é percebido como pano de fundo, na neve ou nas paredes interiores, ilustrando um universo mais racional e materialista. Já a cor vermelha está em todo lugar no filme que fecha a trilogia, com fotografia de Piotr Sobocinski. Seus múltiplos significados (paixão, dor, perigo, intensidade) contaminam as variadas possibilidades de conexão entre os personagens.

A liberdade almejada por Julie em “A Liberdade é Azul” é o que a move após o acidente que matou seu marido e filha; a igualdade em “A Igualdade é Branca” está relacionada com o desejo, por parte de Karol (Zbigniew Kamachowski), de ser igual no sentido de mostrar que é possível ser bem-sucedido como empresário e sobretudo pagar na mesma moeda o sofrimento que sua ex-esposa (Julie Delpy) lhe causou; já o conceito de fraternidade em “A Fraternidade é Vermelha” está diretamente ligado à relação que a modelo Valentine (Irène Jacob) desenvolve com um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant).

O acaso, a duplicidade e as novas chances que o destino oferece costumam se manifestar na obra do diretor através de uma mise-en-scène que explora o detalhe em texturas sonoras e visuais, realçando o aspecto poético dos filmes, com diálogos em segundo plano frente ao não dito. A constante parceria com o compositor Zbigniew Preisner, que participava da produção desde os primeiros esboços de roteiro e compunha a trilha antes mesmo de as filmagens começarem, revela a importância da música como personagem em filmes como “Véronique” e “A Liberdade é Azul”. Em outros momentos, a poesia vem da ausência dela. No primeiro filme da trilogia, logo após o acidente que vitimou seu marido e filha, quando vemos Julie no leito do hospital, a singela imagem de plumas que se movem no ritmo de sua respiração refletem com uma simplicidade arrebatadora a noção de fragilidade da vida.

A força do elemento metafísico se faz presente sobretudo na cena em que, ainda se recuperando do acidente, Julie adormece sentada numa poltrona. Uma luz azul vinda de um lugar indefinido colore seu rosto ao mesmo tempo em que a música do concerto, o elemento que a conecta com o passado que ela deseja esquecer, começa a tocar em sua mente, fazendo com que ela acorde assustada. Como se assumisse o ponto de vista subjetivo da fonte de irradiação da cor, a câmera se move no entorno de Julie, que a mira enquanto o azul paira como uma névoa que ofusca seu rosto. Ela “acorda” para a realidade do tempo presente ao ouvir uma voz feminina lhe dizendo “bom dia”. A música volta a tocar e a tela escurece por alguns segundos até retornar a Julie e o seu “bom dia” de resposta.

Esta cena é também um magnífico exemplo de como Kieslowski transforma a relação entre imagem e som em algo sublime, e de como ele subverte o uso do fade out. Normalmente utilizado no cinema como elemento que marca uma passagem de tempo, aqui o fade tem o objetivo de parar o tempo emocional e existencial de Julie. Entre o cumprimento da jornalista que está escrevendo uma matéria sobre seu marido e sua resposta, aqueles segundos de tela preta transmitem poeticamente a infinita insuportabilidade da dor da reconexão com o passado.

A presença de Emmanuelle Riva, estrela de “Hiroshima Mon Amour”, de Alain Resnais, como a mãe que sofre de demência, é uma referência clara à sua personagem no filme de 1959, que sofre com as lembranças dolorosas do período da guerra. Ao mesmo tempo, é uma homenagem ao cinema francês poético como o de Resnais, que nos estimula a ir a além do ato de ver, pensando e sentindo a imagem.

Se o tema da unificação europeia aparecia em “A Liberdade é Azul” tendo como gancho o concerto musical que ecoa por toda a narrativa, na primeira vez em que a palavra “igualdade” é escutada em “A Igualdade é Branca” ela está ligada à fissura entre o leste e o oeste europeu. Em Paris, durante o julgamento do processo de divórcio do casal formado pelo polonês Karol e a francesa Dominique, ele questiona o juiz: “Onde está a igualdade? O fato de eu não falar francês é razão para o tribunal não ouvir meus argumentos?”. O motivo do divórcio está relacionado ao plano íntimo: desde a noite de núpcias Karol não consegue “consumar” o casamento, o que fez com que ela deixasse de amá-lo. Ela o humilha e, sem casa, dinheiro ou identidade, o transforma num pária expatriado em Paris. Ao longo do filme, a divisão sócio-econômica entre franceses e poloneses vai ficar clara primeiro pela condição de miserável que Karol enfrenta na França e depois na sua obsessão em dar a volta por cima.

Se a política não o interessava mais, como declarou anteriormente, isso não o impediu de observar os efeitos do fim do regime comunista na Polônia. Cenas como a do retorno de Karol dentro de uma mala extraviada no aeroporto por uma gangue de ladrões de bagagem, que o espancam ao perceberem o inusitado conteúdo, evidenciam que essa adaptação aos valores capitalistas ainda se dava aos trancos e barrancos (literalmente, nesse caso) em um país que ainda não fazia parte da União Europeia.

Há uma série de simetrias e pequenas coincidências típicas kieslowskianas na trama, e um desses elementos é o pequeno pente de plástico, que é ao mesmo tempo o instrumento de trabalho de Karol como cabeleireiro, o instrumento musical improvisado como meio de sobrevivência para ganhar uns trocados no metrô parisiense e por fim a inspiração para a vingança contra Dominique, quando ele olha através do pente após forjar a própria morte.

Não é coincidência que Karol se chame, na verdade, Karol Karol. A dupla identidade, tema caro a Kieslowski, se manifesta na dicotomia entre o Karol literalmente (e figurativamente) impotente em Paris e aquele cheio de si que renasce em Varsóvia. Entretanto, quando na cena final ambos voltam a ser um único Karol, essa “reunificação” é ditada pelo desejo amoroso, o elemento íntimo que faz dos filmes de Kieslowski obras atemporais e universais.

“Um filme sobre conexões que desaparecem”, assim Kieslowski define “A Fraternidade é Vermelha”, que começa acompanhando o “ponto de vista” de algo abstrato como uma chamada telefônica, por dentro dos cabos de fibra ótica, até chegar ao seu destinatário (ou melhor, até não chegar, pois ouvimos o sinal de ocupado do outro lado da linha). Era Michel, namorado de Valentine, ligando de Londres para tentar falar com ela em Genebra. Ele consegue numa segunda tentativa, mas não parecem se comunicar propriamente.

Temas kieslowskianos ressurgem com toda a força em seu derradeiro filme: a incomunicabilidade, a solidão, o voyeurismo e sobretudo as conexões fornecidas pelo acaso. Se Valentina não tivesse atropelado o cachorro do Juiz aposentado, provavelmente eles nunca se encontrariam para experimentar a sensação de fraternidade. Quando passamos a conhecer melhor o passado do Juiz e o presente de Auguste, o vizinho de Valentine que está iniciando sua vida nos tribunais, a questão do duplo irrompe mais uma vez nos abrindo a possibilidade de que o jovem seja uma atualização do passado do Juiz.

No fim de “A Fraternidade é Vermelha”, os personagens dos três filmes se salvam em um naufrágio no Canal da Mancha que vitimou centenas de passageiros de um navio. Kieslowski, que anunciara sua aposentadoria dizendo que este seria seu último filme e acabou morrendo de complicações cardíacas pós-cirúrgicas em 1996, aos 54 anos, deixa um último recado através da cena do naufrágio e da excelência de sua trilogia: sobreviverá para sempre na história do cinema através de sua obra.



Ensaio publicado no livro "Clássicos Franceses - Obras-Primas Essenciais" (2024), Ed. Versátil

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