Dois filmes recentes sobre personagens históricos da música popular brasileira, um documentário e outro de ficção, revelam novos caminhos e mostram como o filão ainda parece longe do esgotamento.
“Foi aqui, seu moço/ Que eu, Mato Grosso e o Joca/ Construímos nossa maloca/ Mas um dia/ Nós nem pode alembrá/ Veio os home com as ferramenta/ E o dono mandou derrubar”. O trecho da letra de “Saudosa Maloca”, um dos maiores sucessos da carreira do sambista Adoniran Barbosa (1912-1982), é encenado ficcionalmente no filme dirigido e co-escrito por Pedro Serrano, que leva o mesmo nome da canção. Mato Grosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado) formam com o compositor (vivido pelo músico e ator Paulo Miklos) o trio que responde pela maioria dos causos divertidos que Adoniran, já mais velho, conta para o garçom do bar que frequenta no Bixiga.
As idas e vindas no tempo permitem ao espectador perceber algo além do aspecto musical, já que não há a mesma fidelidade biográfica do doc “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, do mesmo diretor. Se as letras de canções como “Trem das Onze” e “Tiro ao Álvaro” surgem organicamente em diálogos e na narração em off, é a vida em comunidade no bairro, sobretudo na mesa de bar, que se revela fundamental para a criação artística, algo que se perdeu com a predatória especulação imobiliária – não à toa, o grande vilão do filme é o corretor (Paulo Tiefenthaler).
Essa sensação nostálgica tem no entrosamento do trio de protagonistas, que gravitam ao redor da sonhadora Iracema (Leilah Moreno), em meio a deliciosos números musicais cantados por Miklos no formato de roda de samba, um antídoto para o gosto amargo que uma história como essa poderia deixar.
NADA SERÁ COMO ANTES
O Clube da Esquina era um coletivo que nunca se organizou como banda, mas sim como uma reunião de músicos de influências díspares que se valeu de sua proximidade geográfica a partir da amizade de Milton Nascimento, recém-chegado do Rio nos anos 60, com os irmãos Borges no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. Junto com uma leva extraordinária de músicos e letristas, eles compuseram alguns dos álbuns mais marcantes da MPB.
Em um dado momento do documentário “Nada será como antes – A música do Clube da Esquina”, o guitarrista Toninho Horta diz que as melodias com intervalos longos são uma característica típica da música mineira porque acompanham os contornos das montanhas de Minas Gerais. Em seguida, vemos imagens de um carro seguindo por uma estrada bucólica enquanto escutamos os acordes da doce “Clube da Esquina Nº 2”. O filme de Ana Rieper segue essa toada: somos levados a exercitar nossa imaginação muito mais pelo que ouvimos sobre os arranjos das músicas do que pelas imagens por vezes redundantes, como uma viagem de trem para ilustrar “O trem azul”.
No lugar de estabelecer uma cronologia biográfica, o documentário de menos de 80 minutos privilegia as histórias que envolvem as músicas: é através de uma prosa informal bem mineira e descontraída que percebemos a batida africana em “Cravo e Canela”, a referência ao rock progressivo em “Trem de Doido”, conhecemos a musa inspiradora de “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” e percorremos o caminho da delicadeza até o “Cais”.