Críticas


LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA

De: Rose Glass
Com: Kristen Stewart, Katy O'Brian, Dave Franco
29.04.2024
Por Mari Dertoni
A exaltação da força feminina e a desconstrução do gênero frágil

É comum que, ao vermos filmes de ação, filmes policiais de perseguição ou filmes com tiroteios, gangues, drogas e embates mais corporais, reconheçamos tais obras como “masculinizadas”, seja por seus protagonistas e personagens quase sempre majoritariamente masculinos, seja por seu contexto mais violento, que é geralmente atrelado ao homem. Em Love Lies Bleeding, segundo longa-metragem da diretora inglesa Rose Glass, vemos uma subversão desse tipo de cinema quando encontramos representados por mulheres não só o protagonismo, mas a expressão da violência, da imponência, da força física e de comportamentos socialmente não considerados femininos.

No longa, acompanhamos a jornada de Lou – personagem homossexual, interpretada por
Kristen Stewart, atriz que se declarou publicamente bissexual –, que trabalha gerenciando a academia de seu pai, Sr. Lou (Ed Harris). A academia, de aspecto decadente, é onde ela conhece a fisiculturista e forasteira Jackie, interpretada por Katy O’Brian, atriz também assumidamente queer, e se apaixona por ela.

Em
Love Lies Bleeding, a fotografia abusa dos planos detalhe e do uso de uma edição com muitos cortes para ambientar seu clima frenético, inquieto, sexy e sujo. Os corpos são exaltados em tela pela consistência de seus músculos e pela exploração de seu potencial estético. Eles são um dos focos principais da câmera de Ben Fordesman, que também assina a fotografia em Saint Maud (2019), primeiro longa de Glass.

Sarados, suados e bastante à mostra, por baixo das camisetas desgastadas de Lou ou das roupas apertadas de ginástica de Jackie, a exaltação aos músculos ajuda a compor uma atmosfera “vulgar” que a diretora utiliza para dar vida a seus personagens, com cores saturadas e um visual “surrado”, sempre contrastando com o fato de que quem dá o soco, quem é mais forte, quem faz a namorada enlouquecer em cenas de sensuais nada sutis são as mulheres. Essa inversão de papéis, representada com vigor pelas duas atrizes, soa bem, e a química entre elas também.

A figura do pai de Lou – que, além de ser dono da academia, também possui um clube de tiro – é um criminoso mafioso e afeta diretamente o estado psicológico da filha.
Ed Harris pouco aparece em tela, mas, quando está nela, representa a figura mais obscura do longa, com um visual beirando o macabro. Ele intimida, faz com que a vida das duas amantes fique cada vez mais difícil e perigosa, por meio de chantagens e abusos psicológicos. O personagem de Harris indica exatamente a imagem que Rose Gloss quer passar das figuras masculinas no filme, que carregam um pesado aspecto de toxicidade e agressividade, como o marido da irmã de Lou, que trai e espanca a esposa, que vive presa em um relacionamento violento e se sente dependente dele.

O longa é filmado no Novo México, com um cenário árido e bastante ensolarado do deserto. O clube de tiro do Sr. Lou é a céu aberto e é onde Jackie, que chega à cidade procurando abrigo e emprego, consegue trabalhar como garçonete. Ao ser apresentada ao local, o gerente explica a Jackie que,
depois do sucesso de filmes como Duro de Matar, agora a gente tem muitos clientes aqui”. As referências seguem fazendo sentido na execução das cenas quando, depois, as armas e os embates físicos vão ganhando mais peso.

O corpo de Jackie é, obviamente, orgânico e é um organismo que começa a sofrer transmutações que são amplificadas quando ela, por incentivo de Lou, decide tomar anabolizantes. Suas veias engrossam e saltam na pele, e as poses de fisiculturismo expandem a imponência de sua estrutura. Trata-se de um corpo “feminino viril”, um corpo cultuado como objeto de desejo, transformado e intensificado pelo sonho da atleta de se destacar e vencer uma competição de que se inscreveu para participar em Las Vegas.

Rose Glass, que em
Saint Maud já flertava com elementos de realismo fantástico, usando de artifícios gráficos que extrapolam o real para tratar o drama psicológico e o embate religioso de sua protagonista, em Love Lies Bleeding faz uso de CGI para manifestar efeitos alucinógenos em Jackie, quando está apavorada e chapada de anabolizantes durante sua conturbada apresentação na competição. Certas vezes ela amplifica a escala das personagens, tornando-as gigantes, para expressar a força que elas representam juntas, como casal, como mulheres fortes que se colocam à frente, dando a cara a tapa por seus objetivos em uma sociedade hostil e violenta. Fazendo uso de uma linguagem mais estilizada, com espaços para o surrealismo, esses exageros também podem ser encarados como mais uma forma de fuga da seriedade estética, que parece ser um objetivo alcançado pela direção desde o início.

No novo longa de Glass, temos corpos femininos fetichizados não por suas curvas, mas por sua “virilidade”: um adjetivo contraditório quando se atrela ao corpo feminino, mas que se encaixa perfeitamente no universo narrativo que a diretora criou, desmistificando a mulher enquanto pertencente de um gênero socialmente considerado frágil. O fato de as duas protagonistas do romance entre meninas, que percorre todo o filme, serem representadas por atrizes
queer só o engrandece. Sem pudores quanto à sexualidade, à violência explícita, ao tom de vulgaridade e à hiperestilização, como em filmes de Paul Verhoeven ou Brian De Palma, Love Lies Bleeding deixa uma marca de potência no cinema feito por mulheres e ajuda a desconstruir um nicho cinematográfico que sempre foi atrelado a homens.


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