Críticas


O CINEMA INOCENTE DE JULIO BRESSANE

14.10.2002
Por Luciano Trigo
O CINEMA INOCENTE DE JULIO BRESSANE

A partir do dia 15 de outubro, o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro estará sediando uma mostra valiosa para os cinéfilos brasileiros: é a Restrospectiva Julio Bressane: Cinema Inocente, uma oportunidade única para ver ou rever filmes que não são exibidos há décadas. Dois deles foram restaurados com o patrocínio do Banco do Brasil e do Labocine, e um – Bethânia, Bem de Perto (1966) – estava desaparecido há 20 anos. Além disso, só era conhecido em sua versão curta, e será exibido pela primeira vez em versão completa, de 30 minutos.



Logo após a chegada de Maria Bethânia no Rio de Janeiro, Julio Bressane documentou o cotidiano da cantora baiana, e o filme estabelece um diálogo com o videoclipe As canções que você fez para mim, de Bethânia, também dirigido por Bressane, 30 anos depois. Já Cinema Inocente (1980), que dá nome à Restrospectiva, é uma ficção-documental com caráter de manifesto, e também não é exibido desde o seu lançamento.



Mal concluiu seu longa-metragem Dias de Nietzsche em Turim, recém-lançado no Rio e em São Paulo e premiado no último Festival de Veneza, o cineasta Julio Bressane, 56 anos, já está mergulhado nos preparativos de seu próximo projeto, Filme pornográfico. Será seu 36o filme, numa carreira iniciada nos anos 60 e sempre caracterizada pela inventividade, pela ousadia formal e pelos baixos orçamentos.



Apesar de historicamente ligado a um cinema de resistência, Bressane vem acumulando prêmios em festivais internacionais com seus últimos trabalhos, como Miramar, O mandarim e São Jerônimo. Outro sinal do reconhecimento é a retrospectiva completa de sua obra que será feita em Turim – cidade que o cineasta visitou em diversas ocasiões nos últimos anos com sua mulher, a co-roteirista Rosa Dias.



Dias de Nietzsche em Turim recria a passagem do filósofo alemão pela cidade italiana entre abril de 1888 e janeiro de 1889, período de grande fertilidade para Nietzsche, que escreveu ali alguns de seus principais livros, como Ecce Homo e O Crepúsculo dos Ídolos. Além de receber o Prêmio Bastone Bianco em Veneza – honraria só concedida a Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard e Abel Ferrara – o filme foi recebido com entusiasmo nos festivais de Frankfurt, Rotterdam e Brasília.



Julio Bressane começou a filmar ainda criança. Profissionalmente, estreou como assistente de direção de Walter Lima Junior em Menino de Engenho (1965), participando em seguida da criação do chamado Cinema Maginal. Em 1967 dirigiu seu primeiro longa, Cara a Cara, e três anos depois fundou a produtora Belair com seu amigo Rogério Sganzerla: em três meses os dois produziram sete filmes. Outros títulos de destaque em sua carreira foram O Anjo Nasceu, Matou a Família e Foi ao Cinema e Brás Cubas.



Nesta entrevista, Bressane critica os orçamentos milionários do cinema brasileiro, reafirma seu impulso experimentador como cineasta e lembra suas conversas telefônicas com Jorge Luis Borges.



Críticos.com.br - O impulso que te movia a fazer filmes há 30 anos ainda é o mesmo?

JULIO BRESSANE – A única coisa que revoluciona de verdade é o desejo. O amor é uma coisa contínua, permanente. o que muda são os seus objetos. No cinema é a mesma coisa, os objetos mudam, os temas que me emocionam e entusiasmam mudaram, mas o prazer continua. O entusiasmo leva ao encontro, que é uma maneira de sair de si mesmo. Acho que sempre buscamos isso, o extra-si, o movimento para fora, o multiplicar-se. Na verdade, quando você dirige um filme, você faz uma coisa que não sabe o que é. Se soubesse, talvez não fizesse, porque perderia o prazer. Você faz se livrar de algo que não sabe bem o que é. Você conduz o processo criativo só até um determinado ponto, a partir dali é ele que te conduz. Eu procuro interferir o mínimo possível nesse processo...



Críticos.com.br - Todos os seus últimos filmes foram premiados na Europa. Não é estranho que alguém ligado ao cinema marginal viva hoje uma rotina de premiações em festivais internaconais?

JULIO BRESSANE – Essa historia de cinema marginal é muito comprida e desconhecida, é uma história ainda sem história. Quem viveu, quem fez, ainda não narrou essa história, continua algo interdito. Mas eu realmente me surprrendo com a minha sobrevivência no cinema. É um milagre sobreviver fazendo filmes criativos. É claro que não sou insensível a prêmios, mas nunca foi uma coisa importante. Por outro lado, se eu nunca pensei no reconhecimento, ele nunca esteve longe de mim. Sempre tive estímulos.



Críticos.com.br - Como nasceu o projeto de filmar Dias de Nietzsche em Turim?

JULIO BRESSANE – Li Nietzsche de maneira selvagem, mas a aproximação maior, mais sofisticada, se deu sob a orientação da minha mulher, Rosa Dias, naturalmente. Ela faz há mais de dez anos uma pesquisa que inclui a passagem de Nietzsche por Turim. A partir de 1994, eu também mergulhei na pesquisa, lendo não só Nieztzsche, mas uma série de outros autores que mediaram esse contato com o filósofo. Em Nietzsche, o estilo e a complexidade do texto estão imbricados com as idéias filosóficas. Ele é um artista, ele põe a arte na filosofia. De 95 em diante, fizemos uma viagem ano sim, ano não, a Turim. A pesquisa foi extraordinária, e eu reuni um material enorme sobre o que aconteceu com ele na cidade, os cadernos que ele escreveu etc. Eu queria fazer um pequeno filme sobre um grande tema, mas a questão era ver como fazer desse material cinema, identificar o que, no texto, podia ser transcriado em imagens, traduzido de uma linguagem para outra, inter-semioticamente. Busquei os textos que sugerissem um movimento, uma imagem, um conceito... Isso sim foi difícil. Escolhi três idéias do Nietzsche: o jogo das perspectivas, o esmaecimento do sujeito, e o sentimento do apolíneo e do dionisíaco. Trabalhei com esse três núcleos, por exemplo, traduzindo em imagens o conceito de relatividade das verdades, que traduzi com as diferentes texturas da película. Usei sete ou oito texturas diferentes – 35mm, 16mm ampliado, cinescopagem – para traduzir esse conceito, Tudo no filme tem um sentido, até o copo d’água que acompanha Nietzsche. Ele dizia que o copo d’água era como um cachorro, que sempre o acompanhava. Até nisso ele inseria a filosofia. Nietzsche quebrou a barreira entre filosofia e vida, misturou as duas coisas. Ele escreve para uma mulher convidando-a para vir a Turim tomar sorvete, e também insere a filosofia aí, ou num passeio pela ponte... Tudo isso é muito forte, mas difícil de tansformar em filme, a não ser que seja uma mera ilustração. Um filme que recrie Nietzsche com autonomia é algo muito raro. A idéia de transformar uma imagem fixa em movimento, também nietzschiana, está presente na animação de 12 fotos que compramos nos Arquivos Weimar, algumas delas quase inéditas. As fotos ganham um movimento sutil, como se fosse uma filmagem feita no final da vida do filósofo.



Críticos.com.br - Essa idéia de tradução é muito presente em seu trabalho, não?

JULIO BRESSANE – Poucos cineastas, como Godard e Straub, souberam fazer bem essa tradução inter-semiótica. Porque, no cinema de maneira geral, e não apenas em Hollywood, o que se valoriza é o entrecho, a história, o enredo, o plot. Mas isso é apenas uma pequena parte, um ingrediente entre muitos outros do cinema. A tradução inter-semiótica se preocupa com o estilo, e com sua superação. É uma operação experimental, sem regras, fórmulas, sistemas... Depende da intuição, do sentimento. Isso me aproxima da zona central do prazer do cinema – e também da música, da literatura, da dança, de algumas ciências... Traduzir um texto de Guimarães Rosa para o cinema exige que se conheça bem o Rosa, claro, mas exige que se conheça ainda mais a linguagem do cinema, pois é ali que você vai chegar. Tem que saber como provocar no espectador o que o texto escrito provoca no leitor. Essa aproximação de dois objetos é rara. O Processo, de Orson Welles, por exemplo, é um grande filme. É a tradução que o Welles conseguiu fazer livro do Kafka, mas com um repertório próprio. Há outras versões, outros pontos de vista, mas Welles percebeu a questão da linguagem e recriou em cima dela, com a montagem, com alguns paradoxos narrativos, com audácias formais...



Críticos.com.br - Depois de dirigir Dias de Nietzsche em Turim, você concorda com Caetano Veloso quando ele diz que só é possível filosofar em alemão?

JULIO BRESSANE – Isso é só uma frase, não é uma fórmula. Nem sei se essa frase é do Caetano mesmo, deve ser de outra pessoa... Não sei alemão, mas quero dizer uma coisa sobre isso. As línguas não são sinônimas. Cada língua reflete uma maneira diferente de sentir o mundo, uma perspectiva única. O Nietzsche em português exige uma operação tradutória que, apesar de alguns trabalhos louváveis como o de Paulo César Souza, ainda não foi feita. É preciso quase criar uma língua dentro da língua portuguesa para traduzi-lo. Nietzsche chegou ao Brasil em 1895, num artigo de João Ribeiro. Depois José Veríssimo, Araripe Junior e Agripino Grieco também o apresentaram em seus textos. Eu me interessei justamente por essa visão extra-européia do Nietzsche, pelo Nietzsche em português falado no Brasil, uma língua mais bárbara, com a nossa dicção. A história da recepção de Nietzsche em língua portuguesa, mostrando os instrumentos que se criaram na língua para assimilá-lo, ainda não foi feita. Sequer existe uma tradução completa de Nietzsche em português, os escritos póstumos permanecem inéditos. Ele próprio fala da necessidade de uma perspectiva extra-européia, da necessidade de incorporar as forças dos índios peles-vermelhas, da maravilhosa civilização moura de Andaluzi, forças que seriam um antídoto para as forças negativas da Europa, como o nacionalismo. A cultura européia precisava de uma visão de fora.



Críticos.com.br - E o público europeu entendeu isso?

JULIO BRESSANE – Sim. Miramar e São Jerônimo já tinham tido uma excelente recepção em festivais europeus. Mas imaginei que encontraria uma certa resistência ao Dias de Nietzsche em Turim, até porque cada europeu tem sua visão particular do filófofo, há uma briga pelo espólio de seu pensamento. Eu cheguei com o Nietzsche em português, e o público ficou entusiasmado. Um público selecionado, ligado à filosofia. No dia em que eu ia embora, o presidente do festival ligou para o meu quarto dizendo para eu ficar mais um dia, porque receberia um prêmio. A critica puramente de cinema não se sente equipada para falar, mas a platéia mais especializada ficou deliciada com o filme, que consideraram antecipador.



Críticos.com.br - Dias de Nietzsche em Turim custou 250 mil reais. Você se sente indignado diante dos orçamentos milionários de algumas produções brasileiras?

JULIO BRESSANE – Não pelo orçamento em si, mas fico indignado pela impostura. Poderiam gastar até mais. Mas é dinheiro público, que depende de um direcionamento político, através da lei do audiovisual. Depende do grau de aproximação com o poder, depende de saber quais são as empresas, geralmente as estatais, que têm dinheiro a investir, saber com quem falar. Os projetos em si não valem nada. Valem os contatos políticos, a intimidade com o poder. Isso num cinema como o brasileiro, que não tem indústria, é absurdo. Importamos negativo, material de filmar, câmera, carrinho... tudo é importado. Que necessidade temos de seguir o modelo ameicano de cinema, do qual nunca chegaremos nem perto, se quisermos copiar? Isso quando temos uma tradição de autonomia, de experimentação, de humor no nosso cinema. Os filmes que ficaram foram esses, e não são mais feitos, porque se elegeu uma política de feudos, fazendária, terrível. Um modelo de filme passou a prevalecer: o filme de público. Só que não tem público e dá um prejuízo enorme. Só é bom para o produtor, que ganha milhões com a engenharia de produção... Não com a bilheteria, porque não tem. Verdadeiros paquidermes pre-diluvianos. Todo o cinema brasileiro é assim. Um ou dois cineastas brasileiros saem disso aí. Cada um faz o que pode, mas como se trata de dinheiro público e da ausência de bilheteria, deviam dar chance a outros tipos de cinema. Todos os filmes que conseguem captar milhões são iguais. Os que não fazem isso são rotulados de experimentais, “pouco orçamento e muita criatividade”. É uma mentirada, uma impostura que é repetida há 40 anos por toda a imprensa.



Críticos.com.br - Quem se salva nesse cenário?

JULIO BRESSANE – Eu considero Rogério Sganzerla um gênio, um estilista do cinema, uma coisa rara, um dos melhores cineastas do mundo. Nem Tudo é Verdade e Tudo é Brasil são duas jóias, duas obras-primas de invenção intersemiótica. Ivan Cardoso também admiro muito. Faz um cinema de invenção, tem grande talento.



Críticos.com.br - Fale sobre seu próximo projeto, Filme Pornográfico.

JULIO BRESSANE – É uma fábula popular, suburbana, que transcria o mito das três graças, o mito da Vênus terrestre que projeta e é protegida por uma trindade. É um assunto que já foi muito bem estudado por teóricos da pintura moderna e que eu recriei como uma fábula suburbana, popular. É uma história passada hoje, sobre três pessoas comuns – um barbeiro, uma manicure e uma ascensorista – que se encontram e, através de um processo que envolve o prazer sexual e o espiritismo, se põem em contato com essas entidades. De alguma maneira elas revivem essa fábula das graças, pois ocorre uma espécie de hiato no martírio da vida de cada um, no seu cotidiano de calvário. É uma ilusão temporária, uma ilusão do prazer.



Críticos.com.br - Você considera que ainda faz um cinema de resistência?

JULIO BRESSANE – Se for no sentido de uma resistência criadora, sim. A resistência é uma forma de estar aberto para o futuro. Do ponto de vista da criatividade e da graça, as coisas estão muito banidas, muito ausentes. Eu faço um cinema experimental, mas todos os conceitos ligados à idéia de “cinema de autor” hoje estão afásicos, dizem muito pouco sobre o que é importante, repetem jargões e clichês velhos. Escondem muito. “Poucos recursos, muita inventividade”: isso é uma fórmula que não quer dizer nada, porque o experimentalismo não está aí, e sim numa dificuldade, num esforço, que só acontece depois da saturação e da sedimentação de muitas coisas.



Críticos.com.br - Você é contra, então, movimentos como o Dogma 95, que chega a propor um decálogo com regras para um cinema de invenção?

JULIO BRESSANE – Isso é algo infantil e inútil, mas por outro lado é bom que se faça, porque há coisas muito piores sendo feitas por aí. Esses decálogos só não ensinam uma coisa: como fazer. Esta é a questão. A montagem dos filmes do Dogma não me agrada, porque no Brasil já fizemos aquilo há 25, 30 anos. Câmera na mão, luz ambiente, som direto... Isso tudo é velho. Mas ainda assim pode servir como um alerta, e como um foco de luz para o que conta, que é o cinema em si. O Dogma aponta para a linguagem do cinema, e nesse aspecto é bom.



Críticos.com.br - O que você achou de Lavoura Arcaica?

JULIO BRESSANE – Eu me sinto constrangido de falar, porque sei que é gente que gosta de meus filmes, que pocura fazer coisas que eu fiz, e tem uma certa relação criativa comigo... Mas cinema é uma coisa... Não é como literatura, não é como música, não dá para ensinar. Você aprende fazendo, e isso demora. Godard dizia para você pegar um plano do Eisenstein e tentar imitar, para ver como é difícil. O cinema depende de uma percepção que não depende só da vontade. Uma coisa é falar, outra coisa é a imagem. Televisão e publicidade são coisas diferentes, e fazer essa mestiçagem é complicado, porque o cinema já tem um repertório de clichês muito cerrado. É preciso fazer muito para se livrar de certos vícios. Eu vejo uma presença muito forte da linguagem da televisão e do cinema na montagem e no enquadramento de filmes como Central do Brasil, por exemplo.



Críticos.com.br - O cinema mundial atravessa uma crise?

JULIO BRESSANE – Aqui e ali tem gente nova, mas há um recuo do cinema criativo. Quanto mais se avança, maior é a dificuldade. Há uma grande perplexidade no mundo inteiro em relação à ausência de talento. As coisas estão muito iguais. E hoje as pessoas se contentam com muito pouco. Mas talvez a verdadeira questão seja a vitória da civilização do trabalho. A arte só pode ir até um determinado ponto, porque você está falando com gente que está cansada, que passou dez horas trabalhando num escritório... Então o prazer do pensamento é hoje quase inexistente, porque ninguém tem mais cabeça para nada, está todo mundo exausto. O cinema e o teatro têm que se adequar a pessoas que não têm formação, que quase não lêem... As pessoas hoje estão muito exauridas, vão ao cinema e dormem. É uma outra disponibilidade. A pressão do trabalho, da necessidade de sobrevivência, não era da mesma intensidade de hoje. Outra coisa: a televisão hoje é um parâmetro, um contraponto, um campo de tensão para quem faz filmes. Então fazem sempre mais ou menos como na TV. O grau de contaminação semiótica hoje é banal, e quem está acostumado com a TV talvez não queira pagar 15 reais para ver algo muito diferente, ainda mais se não tem dinheiro. É essa falta de discernimento que torna o Brasil diferente desses outros mundos. Quer imitar a casca sem ter estrutura para isso. Mas não precisa estar caudatário disso, não precisava criar essa impostura, esse arsenal de mentiras levando o minueto, quando se podia fazer outro tipo de produção. A “produção experimental marginal” fica com as migalhas, e os outros, que não estão fazendo nada – se fosse uma indústria, ainda vá lá – ficam com tudo, por eleição política, sem mérito algum de criação ou público. Autoritarismo e prepotência absurdos, muito típicos de como se dão as coisas no Brasil. O cinema, em seu comportamento, suas lideranças e seus porta-vozes, é muito semelhante ao que existe na política brasileira, infelizmente. Essa coisa da política ser a realidade, a burocracia... Lamentável.



Críticos.com.br - Como avalia a importância de Mário Peixoto?

JULIO BRESSANE – Mário Peixoto fez um filme só com 18 anos, o que é genial, mas Limite é quase um acontecimento espírita. Nunca fui da curriola que endeusava Mario Peixoto, mas fui talvez o primeiro cineasta do Brasil a estabelecer uma conversa cinematográfica com Limite, no meu filme A Agonia.



Críticos.com.br - Fale sobre o começo da sua carreira, nos anos 60.

JULIO BRESSANE – Eu comecei a fazer filmes antes de 1960. Já em 58, 59, com 12, 13 anos, ganhei numa viagem aos Estados Unidos uma câmera de filmar de três lentes e um projetor de 16 mm. Lá mesmo comecei a filmar. Inseri imagens dessa tomada em A Família do Barulho, onde eu apareço menino, mostro uma tomada da ponte de Nova York... Em 1964, 65, conheci Glauber Rocha, no saguão do teatro Maison de France. Um crítico, José Paes, nos apresentou. Glauber estava mixando Deus e o Diabo na Tera do Sol no estúdio da Atlântida, na Rua México. Ele ia filmar em seguida Senhora dos Afogados, baseado na peça do Nelson Rodrigues, e me chamou para ser seu assistente. O filme acabou não saindo, Glauber ganhou um financiamento da CAIC, órgão do Carlos Lacerda, para produzir o filme do Walter Lima Jr, que tinha sido seu assistente. Ele produziu o primeiro filme do Walter Lima, e eu passei a ser assistente de Menino de Engenho, filmado na Paraíba, enquanto o Leon Hirzman filmava A Falecida, baseado no Nelson. Trabalhei também como assistente em A Viagem, de Fernando Campos. Nesse mesmo ano, final de 65, dirigi meu primeiro filme, um curta sobre Lima Barreto. Em seguida fiz um filme com a Bethania e outro com a Elis Regina. Cheguei a começar a montar, mas esse material desapareceu inexplicavelmente. Era uma produção do David Neves, que tinha os negativos. Fui para a Europa em 66. No início de 67, de volta, inciei a produção do meu primeiro longa-metragem, Cara a Cara. Depois fiz dois filmes ao mesmo tempo em 69, O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema. Eram dois manifestos, em busca de alternativa para o formato de cinema criado pela Embrafilme. Nesse ano eu e Rogerio participamos do Festival de Brasília, e nossa admiração recíproca reusltou na Belair. Fizemos sete longas-metragens em dois meses. Mas a criação deses filmes da Belair provocou uma grande convulsão, teriam feito grande sucesso se tivessem sido lançados. Matou a família foi lançado em 11 cinemas e na segunda semana foi retirado pela censura. A política da Embrafilme era contra isso. Esses filmes foram acusados de serem ligados ao terrorismo. O general Silvio Frota me disse pessoalmente que eram filmes financiados pelo Marighella. E ainda devo a ele não ter sido preso. Mas a censura foi feita pelo próprio meio, que estava encastelado e se sentiu ameaçado. Na Europa fiz alguns filmes, a maioria se perdeu. Dos 36 filmes que dirigi ao todo, seis se perderam. Voltei em 74 e continuei a fazer filmes, com muita dificuldade, remando contra a maré, sempre com orçamentos baixos. Você não faz os filmes que quer, faz os filmes que pode.



Críticos.com.br - Fale sobre Glauber Rocha, como criador e como agitador cultural. O Glauber é um pai que os cineastas brasileiros precisam matar, no sentido psicanalítico?

JULIO BRESSANE – Não gosto dessas fórmulas psicanalíticas. Eu ainda não fiz, nem sei se ainda vou fazer, uma reflexão sobre o Glauber. Fiz alguma crítica cinematográfica sobre coisas que me interessaram, outras nem tanto, outras desprezíveis na obra dele. Terra em Transe me interessa; é um dos filmes com que eu procurei estabelecer um diálogo em Cara a Cara. Mas os filmes que ele fez na Europa eu acho uma porcariada, como O Leão de Sete Cabeças, e mesmo O Dragão da Maldade. Mas gostei muito de A Idade da Terra, que segundo o próprio Glauber foi um filme feito para dialogar com o meu cinema. Glauber foi muito mal interpretado, e curiosamente não deixou ninguém, nada, nenhuma influência no cienma brasileiro. Não há nada mais diferente dos filmes de Glauber que os filmes brasileiros de hoje. Glauber foi um sujeito enterrado pelos amigos.



Críticos.com.br - Em seu livro Cinemancia você escreve um belo texto sobre Jorge Luis Borges, que, para se evadir da realidade do peronismo, ia buscar fora de seus contemporâneos, fora do espírito e dos gostos da época, influências que convinham à sua intuição, refugiando-se nos clássicos da literatura inglesa. A maioria de seus filmes trata de personagens de outras época – São Jerônimo, Padre Antonio Vieira, Machado de Assis etc. Isso é porque você se sente um exilado no presente?

JULIO BRESSANE – Talvez, mas para mim isso é uma coisa inconsciente. A escolha de meus temas é quase involuntária, são coisas que me dão prazer, das quais me sinto próximo e que compreendo, até por temperamento. Não é uma forma de evasão da realidade, porque para mim tudo faz parte do real: todo o passado, toda a memória, os sonhos que eu tenho, tudo isso é real. Essa idéia de separar o mental do físico para mim não existe, aliás talvez o físico só exista em função do mental. Fazer um filme sobre São Jerônimo é uma forma de penetrar profundamente na realidade, não de me evadir – tanto que acabei entrando numa coisa fortíssima no Brasil, o mito do deserto, do sertão.



Críticos.com.br - Conte como foi seu contato com Borges.

JULIO BRESSANE – Conheci o Borges pelo telefone, em 1982. Ele veio ao Brasil e não fui vê-lo, porque não quis quebrar a relação misteriosa que eu mantinha com ele por telefone. Borges era um solitário, você telefonava e ele estava em casa. Eu tinha o projeto, que ainda vou realizar, de filmar um texto que escrevi a partir da lenda de Bily the Kid, chamado O Garoto. Borges tem um texto em História Universal da Infâmia, com uma visão extraordinária e original, uma leitura da infância de Billy The Kid, que retrata como um personagem negativo, um menino ruim que gostava de matar morreu falando palavrões em espanhol. Aí liguei para ele querendo comprar os direitos do texto, consegui o telefone dele no catálogo, Calle Maipu. Atendeu uma governanta que tomava conta dele, Fanny, que ficou minha amiga por telefone. Ele me sugeriu livros, como The Gangs of New York, e outro de um folclorista americano. Hobsbaum tem um texto muito bom sobre Billy The Kid em Bandidos, mas tem um talhe comunista meio datado... Ele tem sempre uma epxlicação econômica e social, não acredita em psicologia. Todo mês eu ligava para ele, só uma vez ele me ligou e minha filha de 5 anos atendeu. “É o senhor Borges”; saí correndo para atender. Uma vez ele me disse que com o dinheiro que eu gastava nas ligações eu poderia comprar suas obras completas. Resumindo, ele não quis vender o texto, alegando que não lhe pertencia, que era uma lenda, uma colagem de vários textos... Borges tinha no final da vida um pouco a idéia do Flaubert, de fazer um livro só com palavras alheias, sem escrever nada ele próprio. Mas ele era um relojoeiro, bastava mudar um advérbio para mudar o sentido da frase. Até que um dia liguei, e ele disse que estava muito doente, pediu que eu não ligasse mais. Logo depois foi para a Suíça e morreu. Casou com a Maria Kodama e morreu. Foi para a Suíça para morrer.



Filmografia de Julio Bressane



Lima Barreto: Trajetória (1966)

Bethania, Bem de Perto (1966)

Cara a Cara (1967)

O Anjo Nasceu (1969)

Matou a Família e foi ao Cinema (1969)

A Família do Barulho (1970)

A Miss e o Dinossauro (1970)

Barão Olavo, o Horrível (1970)

Cuidado, Madame! (1970)

A Fada do Oriente (1971)

Amor Louco (1971)

Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971)

Lágrima Pantera (1972)

O Rei do Baralho (1973)

O Monstro Caraíba (1975)

A Agonia (1977)

O Gigante da América (1978)

Viola Chinesa: Meu Encontro com o Cinema Brasileiro (1979)

Cinema Inocente (1981)

Tabu (1982)

Brás Cubas (1985)

Os Sermões – A História de Antonio Vieira (1989)

Galáxia Albina (1991)

Oswaldianas: Quem seria o Feliz Conviva de Isadora Duncan? (1992)

Galáxia Dark (1993)

Antonioni Hitchcock: A Imagem em Fuga (1993)

O Cinema do Cinema (1993)

O Mandarim (1995)

Miramar (1997)

São Jerônimo (1998)

Dias de Nietzsche em Turim (2002)

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