Existem momentos mágicos na maneira de dois seres humanos se relacionar. Eles estão contidos em algum lugar. Num olhar que se troca; numa frase que se completa; num par de mãos que se encontram. Olhares, frases, mãos, existem por toda parte. Mas é uma química, de novo, mágica, que permite que aflore alguma coisa perfeita e insubstituível, que muitos chamam de paixão. Falo em química porque reconheço a impossibilidade de uma expressão irretocável no sentido absoluto. E me permito essa divagação extemporânea porque tenho consciência da relativização de uma criação literária, ou cinematográfica.
Tome-se a linha que se pode traçar entre a obra de Cormac McCarthy e a adaptação filmada por Joel e Ethan Coen para Onde os Fracos Não Têm Vez. McCarthy desagrada a muita gente pelo que seus críticos entendem como situações comercialmente construídas e a filosofia “de botequim” que eventualmente emana de seus personagens. (Fui alertado para o fato de que muitos diálogos filmados pelos Coen não constam na obra em que se inspiraram – como o estupendo encontro de Anton Chigurth (Javier Bardem) com o dono de um pequeno armazém de beira de estrada (Gene Jones), onde a vida deste é colocada em jogo num cara-ou-coroa sem razão alguma e sem que o objeto do jogo seja declarado explicitamente por qualquer um dos dois).
Se um diálogo consta ou não da obra de McCarthy, isso não tem importância alguma. O que importa é a maneira pela qual as situações são transformadas pelos diretores. Chigurth, ele mesmo, é um grande exemplo. É difícil imaginá-lo agora na pele de um intérprete que não Bardem simplesmente porque o toque de mão entre os diretores e o personagem produziu a magia da perfeição.
Chigurth é um assassino frio que está atrás de Llewelyn Moss (Josh Brolin), um pequeno fazendeiro que achou uma maleta com dois milhões de dólares, fruto de uma guerra entre traficantes. O xerife (Tommy Lee Jones) está atrás de Chigurth. O que há em comum entre os três é a sabedoria. Não tenho certeza se McCarthy sabia disso. Mas os Coen sabem - e é sobre isso que constroem o filme.
O assassino, o fazendeiro e o xerife - assim como a mulher de Llewelyn (Kelly Macdonald) e o assassino de aluguel Carson Wells (Woody Harrelson) - falam um inglês carregadamente texano da mesma forma como Fargo exibe o forte acento de Minnesota. Os Coen cultuam a poesia da palavra, a maneira como ela é pronunciada e fazem o mesmo com seus filmes. Cada plano, tomado isoladamente, parece ser fruto de um profundo estudo.
Nada acontece por acaso. O núcleo do filme está em Tommy Lee Jones, cujo personagem já não se espanta com nada. Jones não participa diretamente de nenhuma das ações que envolvem o assassino e suas presas e ainda assim está no centro de tudo. É ele que abre o filme, em off. Não está falando de Chigurth, mas de um jovem assassino que prendeu há tempos atrás. Está falando de valores esquecidos.
É destes valores a que se refere o belo título, onde “old men” foi impropriamente entendido como “fracos”. É isso que permeia, delicada e imperceptivelmente, todo o filme. Onde os Fracos Não Têm Vez não é sobre a perseguição a um caipira que achou uma mala cheia de dinheiro. É sobre a corrida ao tempo que se perdeu no meio do caminho. Sua matéria-prima é o vazio – que o fazendeiro, o assassino, o xerife exprimem à sua maneira.
Mais de uma vez, o encontro de Chigurth com suas vítimas revela o que acontece no implacável instante da presença do fim. Numa de suas histórias o xerife chama a atenção para o ponto essencial: nem numa disputa entre o homem e o gado pode-se ter certeza do final. Em nenhum momento o vazio que se torna perceptível na presença do fim está explicito (os diretores estabelecem uma antológica parábola na construção do fim do próprio filme), assim como em momento algum se admite que no cara-ou-coroa se está jogando uma vida. Mas os Coen conseguem fazer com que o espectador perceba isso a cada instante, como se percebe o que contém um olhar que pode ser tudo menos um mero olhar.
# ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ (NO COUNTRY FOR OLD MEN)
EUA, 2007
Direção e Roteiro: JOEL & ETHAN COEN
Produção: JOEL COEN, ETHAN COEN, SCOTT RUDIN
Trilha Sonora: CARTER BURWELL
Fotografia: ROGER DEAKINS
Elenco: TOMMY LEE JONES, JAVIER BARDEM, JOSH BROLIN
Duração: 122 minutos