O Olhar de Cinema de Curitiba, um evento vibrante no panorama dos festivais nacionais, revela, a despeito de uma trajetória não tão longa (chegamos em 2024 à decima terceira edição), um trabalho curatorial de relevo, com uma assinatura já reconhecível e que costura muito bem as mostras brasileira e internacional de curtas e longas-metragens. De fato, as sessões de curtas-metragens, que unem filmes brasileiros e estrangeiros, foram programadas com maestria, tendo uma característica pouco usual e que merece destaque. Não apenas os filmes pareciam se encaixar de forma natural, ressaltando as qualidades uns dos outros, fato incomum em festivais (onde é praxe que um curta cômico e leve de ficção seja canhestramente pareado com um documentário denso sobre um tema impactante e um thriller de ficção especulativa), mas os temas das sessões ficavam evidentes para o espectador mesmo sem as ótimas introduções da curadoria de curtas, realizada com excelência inteiramente por mulheres: Carol Almeida, Giulia Maria e Kariny Martins (já a curadoria de longas-metragens ficou a cargo de Camila Macedo, Carla Italiano, Eduardo Valente e Gabriel Borges).
Entre os títulos das mostras competitivas da edição deste ano, foi interessante observar a recorrência de filmes realizados e/ou protagonizados por mulheres, ou que se dedicam a explorar questões de gênero, uma opção lúcida em termos de assustador obscurantismo político-religioso. Essa seleção também sublinha o quanto o cinema atual tem produzido, em distintos cenários socioeconômicos, obras que se dedicam a pensar o lugar da mulher na sociedade contemporânea e os retrocessos e ataques às liberdades outrora conquistadas. Neste caminho, cabe notar que, dos oito longas que compuseram a mostra competitiva nacional, metade foi dirigido ou codirigido por mulheres e apenas um, O Rancho da Goiabada, ou Pois é meu camarada, fácil fácil não é a vida, de Guilherme Martins, tinha por protagonista um homem. O longa, que tem uma proposta interessante e fala sobre a precarização do mundo do trabalho ao contrapor um ator com personagens reais, se perde numa realização pouco coesa e, francamente, confusa. Os outros sete filmes da competição narram histórias centradas em personagens mulheres, sendo seis deles protagonizados ou coprotagonizados por mulheres negras.
O documentário Quem é essa mulher?, de Mariana Jaspe, reconta a vida de Maria Odília Teixeira, a primeira médica negra do Brasil, através dos olhos da historiadora Mayara dos Santos, jovem negra que se dedicou a lançar luz à vida dessa personagem legada ao esquecimento. Apesar da importância do tema, o filme sucumbe ao seu engessamento formal e parece se furtar a debater mais profundamente algumas das questões de gênero que ele mesmo propõe, como o fato de que Maria Odília deixou a medicina quando resolveu se casar.
A mensageira, de Cláudio Marques, se centra no cotidiano de uma oficial de Justiça de Salvador e sofre com um estilo maneirista, diálogos engessados e referências que parecem desconectadas do contexto da trama (Kafka e Bergman são as mais recorrentes, usadas à exaustão). O longa também dilui a força do debate sobre a Justiça brasileira ao mostrar o Poder Judiciário de forma pouquíssimo nuançada, quase pueril.
O mais fraco dos filmes da competição, O sol das mariposas, de Fábio Allon, único longa paranaense do conjunto, se passa numa fazenda de café decadente do interior do estado e narra a solidão de Marta, abandonada pelo marido e sem recursos para pagar os trabalhadores, que encontra algum alento na relação com Juliana, uma de suas funcionárias, de quem se aproxima romanticamente, despertando o preconceito dos demais. O roteiro, fraquíssimo (assinado pelo diretor ao lado de Claudia Lopes Borio), infelizmente escolhe a pornografia do sofrimento feminino como recurso dramático, censurando um simples beijo entre as personagens enquanto dedica diversas cenas às violências sofridas por elas, repetidas, algo gratuitas e narrativamente pouco críveis. Mais uma vez, fica claro que os realizadores homens, quando precisam introduzir conflitos para personagens mulheres, frequentemente recorrem ao estupro e à violência em busca da empatia imediata do espectador. Acontece que, quando a violência é extrema e narrativamente pouco embasada, e em especial quando a trama não é capaz de construir um contraponto a ela (criando bolsões de afeto, encontro, desejo, uma lufada de vida para suas personagens), o efeito pode ser o inverso: o público não se comove com personagens cuja existência conhece apenas através do viés da dor, já que não há qualquer tridimensionalidade reconhecível e não é possível sofrer por mulheres de papel-cartão.
Um dia antes de todos os outros, um filme tão simpático quanto absolutamente requentado, tem por foco o último dia de trabalho da cuidadora e empregada doméstica Marli (Clarissa Pinheiro, ótima, como de costume), que precisa esvaziar às pressas o apartamento da patroa demenciada a pedido de seu filho, que vendeu o imóvel, e para isso pede ajuda à filha adolescente. A sensação é de um longa que já foi visto e revisto muitas vezes, tamanha sua previsibilidade e os clichês dramáticos de que ele se utiliza (a empregada acriticamente apaixonada pela patroa; o choque de gerações entre mãe e filha; a amizade feminina como contraponto ao abandono masculino). Dirigido por duas mulheres, Fernanda Bond e Valentina Homem, o filme se apoia na força do seu elenco, inteiramente feminino. De fato, nos seus enxutos 73 min, não há personagens homens com falas, um dado interessante e que ressalta a negligência dos homens para com as mulheres.
De viés bem mais original que os títulos já citados, o instigante Praia Formosa, de Julia De Simone, parte das escavações realizadas pelas obras de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, nas quais diversos objetos que revelam o cotidiano escravocrata do Brasil colonial foram encontrados, para imaginar personagens (mulheres, mais uma vez) a quem tais objetos possam remeter e, com isso, falar de forma inteligente sobre as heranças mal enterradas da escravidão, que permanecem emergindo no Brasil contemporâneo, um país que ainda elabora mal a violência da sua história. O filme tem uma estrutura sofisticada, que revolve sobre si mesma, obrigando o espectador a repensar o que já lhe foi apresentado a partir das viradas do roteiro, e uma fotografia carregada de simbolismo (assinada por Fernando Marron e premiada pelo júri), capaz de produzir planos indeléveis. O desfecho, no entanto, mina a força do filme, ao sublinhar demais seu discurso e partir para um registro semidocumental, parecendo não confiar que o espectador fosse capaz de alinhavar as pontas do que lhe foi apresentado.
Também estrelado por uma mulher negra, Amandyra, merecidamente laureada com o prêmio de atuação, Greice, de Leonardo Mouramateus, é um filme absolutamente adorável. O longa, eleito o melhor filme pelo júri oficial, narra as desventuras da personagem-título, uma cearense que, ao estudar escultura em Portugal e se envolver com um colega português, termina acusada de atear fogo a um quadro valioso em circunstâncias no mínimo suspeitas e, sem seu visto de estudante, precisa voltar ao Brasil enquanto tenta ser reintegrada à universidade. Uma comédia muito divertida, que também levou o prêmio de melhor roteiro, o filme arranca gargalhadas enquanto trata de racismo e xenofobia de forma bastante sofisticada, através de uma protagonista carismática, que, como narradora de si, é também uma personagem deliciosamente não confiável, mantendo o espectador o tempo todo curioso e desconfiado.
Por fim, o longa que levou o prêmio Abraccine, além dos troféus de melhor direção (para Victoria Alvares e Quentin Delaroche) e montagem (para Delaroche), foi o emocionante Tijolo por Tijolo. Num registro documental divertido, leve e esperançoso, os diretores seguem os membros de uma família que vive na periferia do Recife e, após perder sua casa por problemas estruturais, precisa unir forças para reconstruir sua moradia, apesar das enormes dificuldades financeiras, exacerbadas pela pandemia. O filme tem por protagonista a carismática matriarca da família, Cris Martins, que, grávida do quarto filho e lutando por uma laqueadura, que permanece lhe sendo negada, trabalha como produtora de conteúdo numa plataforma de vídeos curtos, enquanto o marido se dedica diariamente à construção do futuro lar da família, que vive temporariamente com a mãe de Cris. O grande trunfo do longa é explorar a força, a espontaneidade e a união de seus personagens, lançando um olhar terno em direção à periferia ao mostrar uma família negra que é agente de transformações políticas, sociais e culturais. De fato, a consciência política de Cris, que enfrenta médicos e estuda detidamente leis para encontrar as brechas que lhe permitirão conseguir a sonhada laqueadura gratuita, impressiona e constrange o espectador – que é obrigado a admitir para si mesmo que talvez não esperasse ver uma mulher tão articulada, decidida e politicamente consciente num contexto como aquele. Os diretores, que parecem perfeitamente integrados à vida familiar, não se dedicam a mostrar o que ali falta; ao contrário, mapeia-se a vibrante atuação da família na comunidade em que está inserida e os muitos recursos de que eles lançam mão para superar as adversidades. Neste contexto, a paternidade carinhosa e dedicada do marido de Cris proporciona momentos muito tocantes, assim como os trechos filmados pelas crianças da família. Trata-se de um filme que precisa ser visto (e espera-se que os prêmios impulsionem sua circulação) e debatido no Brasil de hoje, já que trata dos direitos reprodutivos das mulheres de forma contundente e perfeitamente orgânica justamente quando eles estão sendo gravemente atacados pelo obscurantismo político-religioso. Em qualquer outro momento histórico, Tijolo por Tijolo seria um filme digno de nota; no Brasil contemporâneo, é um filme essencial.
Como esta análise deixa claro, o protagonismo feminino se mostrou dominante na competitiva de longas nacionais, com alguns filmes explorando questões de gênero e raciais de forma um pouco mais aprofundada e narrativamente mais bem-sucedida que outros. Esses temas também reverberaram nas mostras competitivas internacionais, com destaque para o excelente longa-metragem suíço Os paraísos de Diane, da dupla Carmen Jaquier e Jan Gassmann, que segue uma personagem que, pouco depois de dar à luz, abandona sua bebê no hospital e sai sem destino certo, apenas decidida de que não é capaz de assumir o papel de mãe. O longa, que investiga por que um ato repetidamente cometido por homens com parcas consequências parece tão monstruoso quando realizado por uma mulher, consegue retratar sua protagonista sem recorrer a julgamentos de valor ou se preocupar em justificar sua atitude, uma opção ousada. Já a mostra de curtas-metragens trouxe o documentário norte-americano Contrações, de Lynne Sachs, narrado por ex-funcionárias mulheres de uma clínica de aborto do Tennessee fechada após a anulação do direito constitucional à interrupção da gravidez nos Estados Unidos. Essas mulheres, que não revelam seus rostos, relatam as terríveis consequências desse retrocesso de maneira bastante assertiva.
Todos esses exemplos reverberam uma preocupação com o lugar da mulher no mundo contemporâneo, onde a brutal onda de retrocessos com relação aos direitos das mulheres fez com que o debate público precisasse revisitar questões que anteriormente pareciam superadas. É interessante notar como o cinema se alimenta dessas temáticas urgentes da pauta contemporânea – algumas vezes de forma mais bem lapidada do que outras. Esta seleção, em que o protagonismo feminino emergiu com força, amplificou um debate importante, mostrando um trabalho curatorial consciente do cenário político atual e (também por isso, mas não apenas) digno de aplausos.
Este texto foi publicado originalmente no site da Associação Brasileira de Críticos de Cinema - Abraccine.