Críticas


SANGUE NEGRO

De: PAUL THOMAS ANDERSON
Com: DANIEL DAY-LEWIS, PAUL DANO, KEVIN J. O’CONNOR
17.02.2008
Por Nelson Hoineff
DEUS E O DIABO EM LITTLE BOSTON, CALIFORNIA

Se alguém alguma vez quiser entender o que faz do cinema uma forma de arte completa, bem, acho que uma grande pista acaba de aparecer aqui do lado: ela está em Sangue Negro.



Para um casal que estava sentado ao meu lado, trata-se de “um filmezinho danado de ruim”. Para o Juri da Berlinale, é pior que Tropa de Elite. Nem o casalzinho, nem as seis pessoas comandadas por Costa-Gavras estão necessariamente agindo de má-fé. Isso acontece simplesmente porque a construção de um filme se fundamenta na sua forma de dialogar com a audiência – e a audiência pode estar sempre em busca de outras formas de diálogo. Tal coisa, aliás, é extensiva não só a qualquer outra forma de expressão, mas também à maneira de nós mesmos nos exprimirmos. Por que o Fantástico e o Show do Faustão amargam perdas verticais de audiência? Os programas certamente não pioraram. Foram as audiências que perceberam que, na Internet e em outras plataformas, existem formas mais enriquecedoras de aproximação.



Buscamos nossos interlocutores muito menos pelo que eles têm a nos dizer e muito mais pelo que temos de dizer a eles. Paul Thomas Anderson busca a interlocução que não lhe exija concessões na hora de afinar esse diálogo. Sua forma de narrar é requintada, sua maneira de filmar é elegante. Em pouco tempo, seu estilo tornou-se sólido como uma rocha. Se isso era visível em Boogie Nights, explodiu em Magnólia e agora, com Sangue Negro, chega ao paroxismo.



O filme baseia-se numa obra de Upton Sinclair publicada em 1927. Conta a saga da corrida ao petróleo, desde os últimos dias do século 19, por empreendedores individuais como Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis). Ele é um homem rude, que cada vez mais é levado a se comportar com rudeza. A vida o enriquece, tanto quanto o embrutece. Plainview poderia não ser muito diferente de tantos outros personagens que aprendem com a vida a ser insensíveis. Mas Anderson e Day-Lewis o transformam em algo bem diferente de um homem, fazem de Plainview uma incontrolável força da natureza. A partir daí, temos que reconhecer que todas as ilações que se fizerem com Cidadão Kane serão pertinentes. E hesito um milhão de vezes em dizer, e jamais direi em tom jocoso, nem sob tortura, que Cidadão Kane é Cidadão Kane, e Sangue Negro é Sangue Negro.



Plainview, cuja vida foca-se progressivamente para a conquista do petróleo e da fortuna, encena cada encontro de negócios que vai ter; e a companhia de seu filho é parte essencial deste show. Quando o filho fica surdo em decorrência de um acidente, Plainview não hesita em abandoná-lo – e Anderson nos dá isso com grandeza e respeito; ele nos emociona sem ousar extrair da sua platéia a lágrima fácil. A trajetória do prospector de petróleo, baseada em comprar por baixo preço enormes lotes onde haja para ele evidencias da presença do óleo, ganha hegemonia sobre todas as suas outras vontades, sobre todos os valores possíveis sobre os quais uma vida possa ser feita. Plainview é confrontado com um jovem pastor de uma igreja evangélica (Paul Dano), a quem ele pessoalmente humilhou e cuja família ele explorou financeiramente. Mas agora a questão está entregue aos desígnios de Deus e do demônio. Num momento, Plainview se converte, no outro é o pastor que confessa ser um impostor. Não há traços de verdade nem num discurso nem do outro. Há, contudo, a implacável presença do inusitado em ambos os casos. À sua maneira, esses homens estão em busca de dinheiro e dedicaram suas vidas a essa missão. E estes atores estão no limiar da perfeição.



O que há de verdadeiramente excepcional em Sangue Negro é que ele é construído só a partir de momentos assim. Cada plano é rodado como se fosse o testamento do diretor. Percebi os olhos de Lewis no confronto final com o filho, numa linguagem de surdo-mudo de onde eventualmente emana sons que não sabemos ao certo se existem. Vejo o confronto final entre o prospector e o profeta Eli, uma pontuação extraordinariamente complexa, de inspiração shakespeariana, à qual poucos atores sérios se atreveriam chegar e diretores menos ainda, mas Lewis, Dano e Anderson o fazem. Cada um desses momentos colocaria no mais alto nível obra que os contém. Em Sangue Negro eles estão às dezenas. Baseado em interpretações soberbas, num desenho de produção e numa trilha sonora fora de todos os parâmetros habituais, Anderson entrega um retrato eloqüente, não de um prospector, mas da condição humana. Sozinho no filme, odiando todos os homens inclusive a si mesmo, Plainville está na verdade, como qualquer missionário gostaria de dizer, em cada um de nós.



Em sua resenha do filme, Roger Ebert nos lembra de uma frase em Cidadão Kane: não há problema em ganhar dinheiro se o que você quer é ganhar dinheiro. Revi Cidadão Kane, durante uma de minhas aulas, há uns 6 meses. O filme que vi era para mim inteiramente novo. Não era sobre Hearst, ou sobre a ética do poder, mas sobre a perda da inocência. Enquanto crescemos, Rosebud cresce também. Percebi que o grande filme não acaba nos seus créditos de encerramento. Pelo resto da vida ele estará nos esperando, na próxima esquina – e para encontrá-lo temos apenas que deixar o tempo aumentar o nosso repertório.



O que temos em Sangue Negro é a descrição de uma bárbara luta que geralmente não conseguimos assistir porque o seu palco está dentro de nós. Não assistimos mas enxergamos. Anderson usa a câmera com a sabedoria que reconheço em poucos outros artistas (um deles, Robert Altman, que ele homenageia ao final). Ela não a utiliza para nos subjugar. Ela não pede que estabeleçamos um código tolo qualquer para assimilarmos uma história que vai nos entreter. Ela é erguida com enorme generosidade para construir um pouco do que o cinema pode fazer de melhor. É assim que artistas como Anderson humanizam a sua obra. A experiência de ver Sangue Negro transcende em muito a de acompanhar a história que um filme quer nos passar. É uma incomparável viagem ao que há de mais complexo no ser humano e ao que de mais extraordinário a arte cinematográfica é capaz de nos oferecer.



# SANGUE NEGRO (THERE WILL BE BLOOD)

Estados Unidos, 2007

Direção e Roteiro: PAUL THOMAS ANDERSON

Fotografia: ROBERT ELSWIT

Edição: DYLAN TECHINOR

Direção de Arte: DAVID CRANK

Música: JONNY GREENWOOD

Elenco: DANIEL DAY-LEWIS, PAUL DANO, KEVIN J. O’CONNOR, DILLON FREASIER.

Duração: 158 minutos

Site oficial: http://www.paramountvantage.com/blood/

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