“Anora” começa como um conto de fadas (a stripper que conhece um príncipe encantado milionário) e quando tudo ameaça dar errado para a personagem-título ele se torna uma comédia maluca que arrancou muitas gargalhadas da plateia no Festival de Cannes de 2024 (de onde saiu com a Palma de Ouro). Ao justificar o prêmio para o filme de Sean Baker, a presidente do júri Greta Gerwig elogiou justamente este aspecto, dizendo que o filme fazia lembrar a estrutura das clássicas screwball comedies como as de Ernst Lubitsch e Howard Hawks. Curioso foi o júri ter optado por dar o prêmio máximo para um filme com essas características em um ano com uma porção de produções que ressaltavam políticas afirmativas ou que desafiavam o status quo.
Em diversas delas vimos mulheres fortes como protagonistas, e é nesse ponto que “Anora” se alinha com “Emilia Perez”, “Bird”, “All We Imagine As Light” e outros bons filmes em competição. Vale notar o contraste com o ótimo drama dinamarquês “A Garota da Agulha”, em que a protagonista, operária de uma fábrica têxtil, inicia um romance com o diretor e herdeiro da empresa, mas quando eles anunciam o casamento, a mãe dele, uma baronesa, ameaça deixar o filho sem um tostão e ele termina a relação. O sonho de Cinderela da moça vai por água abaixo, um prenúncio das muitas tragédias que se seguirão.
Em “Anora”. há uma situação semelhante. Anora, ou simplesmente Ani (Mikey Madison, uma das integrantes da gangue de Charles Manson em “Era Uma Vez em Hollywood”, de Tarantino), trabalha como stripper num nightclub, e eventualmente faz programas sexuais por fora. Após receber uma oferta irrecusável de Vanya (Mark Eydelshtein), um jovem herdeiro de um oligarca russo curtindo a vida adoidado nos Estados Unidos, ela passa uma semana oferecendo a ele, além de sexo a qualquer momento, companhia para noitadas intermináveis em boates, drogas, videogame e tudo o mais que um milionário imaturo e sem limites pode querer. A aventura termina em Las Vegas, onde o inebriado rapaz propõe um casamento imediato, uma cerimônia kitsch como mais uma de suas brincadeiras inconsequentes – só que dessa vez com valor legal, registrado em cartório.
Ani não é a gata borralheira ingênua. De uma relação comercial a coisa evolui para um romance onde ela pragmaticamente enxerga em Vanya alguém que pode lhe oferecer um futuro financeiro melhor. Com o tempo pode até ser que o amor surja na relação. Afinal, embora infantilizado e meio bobo, ele é carinhoso, atencioso, faz ela se divertir e parece sincero. Ou seja, bem diferente dos homens que ela deve ter conhecido em seus vinte e poucos anos de vida dura. Há uma complexidade nessa situação que é realçada pela ótima atuação de Mikey Madison.
Só que quando a notícia do casamento chega na Rússia, os pais de Vanya ordenam imediatamente a seus capangas que anulem os registros no cartório. O rapaz, em mais um surto de imaturidade, simplesmente sai de casa correndo para colocar pra fora sua revolta bebendo, cheirando e fazendo um tour pelas boates locais, enquanto Ani fica sob a escolta dos seguranças da família.
É a partir daí que o filme toma um rumo inesperado e surpreendente: no lugar de explorar o drama da protagonista, a narrativa embarca em uma espiral cômica delirante que de fato faz lembrar as screwball comedies de Lubitsch, Hawks e derivados (como Almodóvar). Ani reage à situação partindo pra cima dos seguranças, e as cenas de violência entre eles são de chorar de rir, assim como tudo que se sucede nessa noite em que eles tentam descobrir o paradeiro de Vanya. O filme ganha ares de “Depois de Horas”, de Scorsese, e o pesadelo maior passa a ser o dos funcionários do milionário russo, que percebem que seus empregos (e talvez suas vidas) podem estar em risco se não encontrarem o menino mimado.
Sean Baker já abordou de maneira realista, em filmes anteriores, situações envolvendo não só profissionais do sexo (“Tangerine”, “Red Rocket”) como famílias americanas disfuncionais (“Projeto Flórida”). Com "Anora", ele consegue seu melhor resultado, optando por um inesperado e arriscado caminho pelo humor catártico que não aliena o espectador, muito pelo contrário: a brilhante e delicada cena final, que é seguida de créditos sem música, mostra que o cinema pode ser diversão e ao mesmo tempo um necessário convite à reflexão.
(Adaptado de texto escrito pelo autor durante o Festival de Cannes)