Críticas


EMILIA PÉREZ

De: JACQUES AUDIARD
Com: ZOE SALDAÑA, KARLA SOFIA GASCÓN, SELENA GOMEZ, ADRIANA PAZ
07.02.2025
Por Marcelo Janot
Um musical que mistura gêneros ficcionais diversos com elementos de fábula não deve ser visto como um documentário.

Assisti a “Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, em Cannes no ano passado. Era a première mundial do filme, quase nada se sabia dos bastidores. Pela pequena sinopse, não se tinha a menor ideia de que filme seria aquele. Quando bateu na tela, o impacto foi tremendo, se tornando a sensação do festival. Com elogios quase unânimes, foi logo apontado como um dos favoritos à Palma de Ouro. Ganhou o Prêmio do Júri, equivalente ao terceiro lugar, e a Palma de interpretação feminina para o conjunto de atrizes . De lá pra cá, segundo o IMDB, o filme recebeu mais 92 prêmios, entre eles o Globo de Ouro de Melhor Filme na categoria Musical/Comédia.

Revi “Emilia Pérez” no Festival de Palm Springs no início de janeiro desse ano, onde a repercussão entre a plateia que ainda não tinha visto foi igualmente entusiasmada. Fiz parte do júri que premiou “Ainda Estou Aqui” como Melhor Filme e Zoe Saldaña, a verdadeira protagonista de “Emilia Pérez”, como Melhor Atriz (só podia ser atribuído um prêmio por filme).

No dia 23 de janeiro saíram as indicações ao Oscar, com o filme concorrendo a 13 prêmios, o recordista do ano. De lá pra cá, o que era quase unanimidade passou a ser massacrado, com a grande maioria dos comentários negativos vindo de pessoas que sequer o assistiram. E nem se importavam com isso, porque para elas o que está em torno do filme e de sua produção se tornou mais importante do que a qualidade artística. O que é visto na tela virou mero detalhe frente às entrevistas preconceituosas da atriz Karla Sofia Gascón e às declarações infelizes do diretor e suas escolhas de elenco e locação. O Fla x Flu no formato de vale tudo que se tornou a campanha do Oscar só acentuou o ódio em relação a um filme e atriz que passaram a ser enxergados, no Brasil, como “inimigos” por causa de “Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres. Onde já se viu elogiar um concorrente? Dentro dessa lógica, muita gente já vai assistir “Emilia Pérez” com pré-disposição para detestá-lo. Engaja melhor e se sente valorizando o produto brasileiro.

O gênio Sergio Leone filmou na Espanha, com predominância do uso de atores europeus, suas obras-primas que se passavam no Velho Oeste americano. Talvez hoje fosse “cancelado” pelos tribunais de inquisição das redes sociais. Em “Emília Perez”, Jacques Audiard recria o México em locações francesas, quase sem recorrer a atores mexicanos, para contar a história de um dos mais violentos e poderosos chefes do cartel de drogas local, Juan “Manitas” Del Monte, que contrata uma respeitável advogada para ajudá-lo a realizar seu sonho de fazer a transição de gênero e se tornar Emilia Pérez.

Não bastasse a originalidade do surpreendente argumento, o diretor e roteirista conta sua história, que tem elementos de thriller, drama e pitadas de comédia, no formato de musical clássico, com coreografias e atores dialogando cantando. A meu ver, um musical que mistura gêneros ficcionais diversos com elementos de fábula não pode ser criticado, como andam fazendo por aí, por não reproduzir fielmente a realidade do universo que aborda, como se a ficção se limitasse a prestar contas à realidade. Ainda assim o projeto era uma aposta arriscada, em que tudo poderia dar errado, mas que acaba funcionando muito bem por uma série de motivos.

Em primeiro lugar, o elenco eclético em língua espanhola dá liga. A atriz hollywoodiana Zoe Saldaña tem um de seus melhores desempenhos no papel da advogada, que a permite explorar seu talento dramático, enquanto a atriz trans espanhola Karla Sofía Gascón dá conta muito bem de uma personagem complexa, que ao longo do filme apresenta duas personalidades distintas, algo que não é tarefa das mais simples. A atriz e cantora Selena Gomez está supreendentemente bem no papel da mulher de Manitas.

A trilha sonora, composta pela francesa Camille (do grupo Nouvelle Vague) e seu parceiro Clément Ducol, é outro ponto alto. Salvo uma ou outra música melosa que não funciona, os números musicais são ótimos – mesmo aquele que tem como tema a vaginoplastia, acredite.

E, por fim, vale destacar a maneira como Audiard toca em temas importantes que vão desde críticas ao machismo estrutural da sociedade mexicana à lembrança dos inúmeros mortos e desaparecidos inocentes nas disputas do tráfico. Pode-se até questionar a opção por glorificar um assassino arrependido, quase absolvendo-o de seu passado, mas dependendo do viés com que se encara uma história que mistura elementos realistas e fabulares, as imperfeições passam a ser insignificantes perto do frescor contagiante de “Emilia Pérez”.


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Outros comentários
    5376
  • Alberto Flaksman
    08.02.2025 às 11:05

    A resenha do Janot é, como de hábito, inteligente e produto de quem, de fato, conhece e ama o cinema. Qualquer crítico com essas qualidades deve reconhecer, antes de mais nada, que o francês Jacques Audiard é um ótimo diretor, com uma filmografia de respeito. E, de fato, Emilia Pérez é um filme extremamente criativo a que se assiste com muito prazer. Desde, é claro, que se esteja aberto a apreciar uma obra surpreendente, sem preconceitos apriorísticos ou nacionalismos e radicalismos identitários de qualquer espécie. Incentivo os leitores a seguir a visão do Janot. Quem deixar de assistir a Emilia Pérez por influência de terceiros estará perdendo mais um belo momento do cinema contemporâneo. E também a oportunidade de torcer para que este filme, além do nosso Ainda Estou Aqui, receba o merecido reconhecimento.