Assisti a “Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, em Cannes no ano passado. Era a première mundial do filme, quase nada se sabia dos bastidores. Pela pequena sinopse, não se tinha a menor ideia de que filme seria aquele. Quando bateu na tela, o impacto foi tremendo, se tornando a sensação do festival. Com elogios quase unânimes, foi logo apontado como um dos favoritos à Palma de Ouro. Ganhou o Prêmio do Júri, equivalente ao terceiro lugar, e a Palma de interpretação feminina para o conjunto de atrizes . De lá pra cá, segundo o IMDB, o filme recebeu mais 92 prêmios, entre eles o Globo de Ouro de Melhor Filme na categoria Musical/Comédia.
Revi “Emilia Pérez” no Festival de Palm Springs no início de janeiro desse ano, onde a repercussão entre a plateia que ainda não tinha visto foi igualmente entusiasmada. Fiz parte do júri que premiou “Ainda Estou Aqui” como Melhor Filme e Zoe Saldaña, a verdadeira protagonista de “Emilia Pérez”, como Melhor Atriz (só podia ser atribuído um prêmio por filme).
No dia 23 de janeiro saíram as indicações ao Oscar, com o filme concorrendo a 13 prêmios, o recordista do ano. De lá pra cá, o que era quase unanimidade passou a ser massacrado, com a grande maioria dos comentários negativos vindo de pessoas que sequer o assistiram. E nem se importavam com isso, porque para elas o que está em torno do filme e de sua produção se tornou mais importante do que a qualidade artística. O que é visto na tela virou mero detalhe frente às entrevistas preconceituosas da atriz Karla Sofia Gascón e às declarações infelizes do diretor e suas escolhas de elenco e locação. O Fla x Flu no formato de vale tudo que se tornou a campanha do Oscar só acentuou o ódio em relação a um filme e atriz que passaram a ser enxergados, no Brasil, como “inimigos” por causa de “Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres. Onde já se viu elogiar um concorrente? Dentro dessa lógica, muita gente já vai assistir “Emilia Pérez” com pré-disposição para detestá-lo. Engaja melhor e se sente valorizando o produto brasileiro.
O gênio Sergio Leone filmou na Espanha, com predominância do uso de atores europeus, suas obras-primas que se passavam no Velho Oeste americano. Talvez hoje fosse “cancelado” pelos tribunais de inquisição das redes sociais. Em “Emília Perez”, Jacques Audiard recria o México em locações francesas, quase sem recorrer a atores mexicanos, para contar a história de um dos mais violentos e poderosos chefes do cartel de drogas local, Juan “Manitas” Del Monte, que contrata uma respeitável advogada para ajudá-lo a realizar seu sonho de fazer a transição de gênero e se tornar Emilia Pérez.
Não bastasse a originalidade do surpreendente argumento, o diretor e roteirista conta sua história, que tem elementos de thriller, drama e pitadas de comédia, no formato de musical clássico, com coreografias e atores dialogando cantando. A meu ver, um musical que mistura gêneros ficcionais diversos com elementos de fábula não pode ser criticado, como andam fazendo por aí, por não reproduzir fielmente a realidade do universo que aborda, como se a ficção se limitasse a prestar contas à realidade. Ainda assim o projeto era uma aposta arriscada, em que tudo poderia dar errado, mas que acaba funcionando muito bem por uma série de motivos.
Em primeiro lugar, o elenco eclético em língua espanhola dá liga. A atriz hollywoodiana Zoe Saldaña tem um de seus melhores desempenhos no papel da advogada, que a permite explorar seu talento dramático, enquanto a atriz trans espanhola Karla Sofía Gascón dá conta muito bem de uma personagem complexa, que ao longo do filme apresenta duas personalidades distintas, algo que não é tarefa das mais simples. A atriz e cantora Selena Gomez está supreendentemente bem no papel da mulher de Manitas.
A trilha sonora, composta pela francesa Camille (do grupo Nouvelle Vague) e seu parceiro Clément Ducol, é outro ponto alto. Salvo uma ou outra música melosa que não funciona, os números musicais são ótimos – mesmo aquele que tem como tema a vaginoplastia, acredite.
E, por fim, vale destacar a maneira como Audiard toca em temas importantes que vão desde críticas ao machismo estrutural da sociedade mexicana à lembrança dos inúmeros mortos e desaparecidos inocentes nas disputas do tráfico. Pode-se até questionar a opção por glorificar um assassino arrependido, quase absolvendo-o de seu passado, mas dependendo do viés com que se encara uma história que mistura elementos realistas e fabulares, as imperfeições passam a ser insignificantes perto do frescor contagiante de “Emilia Pérez”.