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IT WAS JUST AN ACCIDENT, de Jafar Panahi / WOMAN AND CHILD, de Saeed Roustayi
FAVORITISMO E POLÊMICA: OS IRANIANOS NA COMPETIÇÃO
Pelo segundo ano consecutivo, o cinema iraniano é um dos principais assuntos no Festival de Cannes. Ano passado, o cineasta Mohammad Rasoulof condenado a oito anos de prisão, teve que fugir do país para conseguir exibir “A Semente do Fruto Sagrado”, vencedor do prêmio de Melhor Filme da crítica internacional (FIPRESCI) no júri que eu presidi, além de um prêmio especial do júri principal. Esse ano o país está presente com dois filmes na competição: “It was just an accident”/”Un simple accident” (“Yek Tasadef Sadeh”), de Jafar Panahi, e “Woman and Child”(“Zan va bache”), de Saeed Roustaee.
Panahi, 64 anos, é conhecido por filmes multipremiados como “Táxi Teerã”, “Isto Não É Um Filme”, “Três Faces” e “O Balão Branco”. “It was just an accident” é a meu ver o melhor filme exibido no Festival esse ano, e vem sendo apontado como um dos favoritos à Palma de Ouro. A razão é tão simples quanto o título: Panahi parte de uma premissa singela (o atropelamento de um cachorro numa estrada) para, a partir deste fato, trazer à tona a violência com que o governo teocrático trata seus opositores.
O acidente faz com que o motorista tenha que parar em um estabelecimento perto da estrada para verificar uma avaria no veículo. Um funcionário, Vahid, ao ouvir o barulho da prótese de perna mecânica, identifica o dono do carro como sendo seu torturador no período em que esteve encarcerado como preso político. Enfurecido, no dia seguinte arma uma emboscada para sequestrá-lo. Prestes a enterrá-lo vivo no meio do deserto como forma de vingança, Vahid é acometido pela dúvida quando o sujeito jura que está sendo confundido.
Para ter certeza e poder matar sem risco de remorso, Vahid resolve procurar outras vítimas conhecidas do suposto torturador. Ele encontra a fotógrafa Shiva durante uma sessão de fotos para um casamento. E descobre que a noiva que ela fotografava também sofreu experiências traumáticas pelas mãos do mesmo agente – só que ninguém consegue ter certeza se era mesmo ele, pois ao serem torurados geralmente estavam de olhos vendados. Uma das vítimas jura ser ele ao acariciar sua perna mecânica, pois lembra que uma das torturas empreendidas pelo agente de codinome Pegleg envolvia passar a mão na perna que ele perdeu lutando na Síria.
O diretor quebra a tensão explorando também a comicidade advinda de uma situação surreal como a de uma mulher com vestido de noiva percorrendo a cidade em uma van junto com outras pessoas e um sujeito amarrado dentro de um caixão. Entretanto, o que prevalece é o sentimento de estupefação diante dos relatos dos ex-torturados. A violência não é mostrada, mas a descrição do que eles sofreram é chocante. Panahi, que se baseou no que ouviu de seus ex-colegas de prisão no período em que esteve encarcerado, nunca foi tão explícito e direto na crítica ao regime. Até o final o dilema vai permanecer, suscitando diversas discussões morais que envolvem empatia, remorso e vingança em uma obra-prima que permitirá ao júri, se quiser, corrigir a injustiça que foi ter dado ao melhor filme do ano passado apenas um prêmio de consolação.
Já o outro filme iraniano, “Woman and Child”, chamou mais a atenção por uma polêmica ocorrida fora das telas. O diretor Saeed Roustayi, que pertence à nova geração (tem 35 anos), está sendo alvo de críticas e protestos por parte da Associação Iraniana de Cineastas Independentes, composta por 300 realizadores exilados. A razão: pelo fato de trazer personagens femininas que se vestem com a hijab (o véu islâmico), acusam o filme de “propaganda do regime”. O diretor (que em 2023 passou seis meses na prisão por causa de seu filme anterior, “Os Irmãos de Leila”), contra-argumenta que a concessão à jihab foi o único meio de driblar a proibição de se filmar no país sem sofrer perseguição – caso contrário, jamais poderia rodar em hospitais, escolas e outros lugares públicos que o roteiro exigia.
O problema nesse tipo de protesto que pretende combater a censura com mais censura é que algumas das pessoas que se manifestaram declararam sequer terem visto o filme, que não tem nada de propaganda do regime, muito pelo contrário. A história de Mahnaz, uma viúva com dois filhos pequenos que tenta reconstruir sua vida mas é abalada por elementos desencadeados por uma tragédia pessoal, é reflexo da estrutura patriarcal opressora característica da sociedade iraniana, facilitada e estimulada pelo regime. Praticamente todos os personagens masculinos adultos são crápulas insensíveis, e as mulheres vítimas.
Com hijab ou sem hijab, o que o filme mostra é interessante e traz discussões relevantes, mas a roupagem cinematográfica é excessivamente melodramática e discursiva, o que acaba tirando a sua força. Ainda assim, é bom ver o cinema iraniano atravessando fronteiras para exibir sua realidade ao mundo.
O AGENTE SECRETO, de Kleber Mendonça Filho
Carnaval de 1977. Um motorista (Wagner Moura) leva seu Fusquinha para abastecer em um posto de beira de estrada no interior de Pernambuco. A poucos metros dele, no pátio, jaz um cadáver coberto com um jornal, moscas voando ao redor. Logo em seguida chega uma patrulha da Polícia Rodoviária, que ignora o cadáver e tenta arrumar a todo custo um pretexto para arrancar algum dinheiro do motorista. Como toda a documentação e equipamentos do carro estavam em dia, eles se contentam com alguns cigarros e partem, abandonando o corpo putrefato.
A cena acima abre “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, e é importante para reforçar aspectos característicos da brasilidade – a corrupção, o abuso de autoridade e a banalização da violência – que permanecem vivos nas relações entre o poder público e o cidadão. Essa é apenas a primeira ponte que o diretor vai estabelecer entre o Brasil do período da Ditadura Militar e o presente.
O filme marca o retorno do cineasta à disputa da Palma de Ouro, seis anos depois de vencer o Prêmio do Júri com “Bacurau”, e embora também flerte com o cinema de gênero, em cenas dignas dos melhores thrillers de alta tensão, tem uma atmosfera menos catártica e explosiva, o que não impediu uma calorosa recepção do público na sessão (sem essa bobagem de contar os minutos seguidos de aplausos, uma armadilha que a imprensa em geral vem caindo sem nenhum tipo de questionamento).
“O Agente Secreto” se soma a “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, como um reforço importante na preservação, pelo viés da ficção de excelência, da memória de um período tenebroso da história brasileira que parte da população ainda desconhece ou se recusa a conhecer. É verdade que, mesmo terminada a Ditadura, muita coisa permanece idêntica, como a violência policial arbitrária e sem limites, e os privilégios de classe. O filme reforça essa ligação, com policiais desovando cadáveres no rio, ou na cena em que uma mulher rica tem uma série de regalias ao prestar depoimento na delegacia sobre a morte do filho da empregada, que estava sob os cuidados dela quando foi atropelado. A referência é clara a uma tragédia real e recente: a morte do menino Miguel após a queda do nono andar em um prédio de luxo no Recife em 2020. A ré, patroa da mãe da criança e casada com político influente, segue em liberdade.
Há também uma outro aspecto caro ao diretor, que jamais nega o seu passado de crítico, que são as referências cinematográficas que a todo o instante surgem na tela e a importância deixada pela memória dos cinemas de rua, algo que foi tema de seu documentário “Retratos Fantasmas”. Por isso, no novo filme, o tradicional cinema São Luiz, no Centro do Recife, tem mais do que o status de locação onde passam filmes como “Tubarão” e “A Profecia”: ele é praticamente um personagem.
A tradição oral, pela reprodução da lenda urbana da Perna Cabeluda (também citada por Chico Science na letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”), abre uma brecha para que Kleber insira uma referência ao cinema fantástico que sempre povoou sua obra. Ou seja, para além da história envolvente de um sujeito jurado de morte que une forças com outros “refugiados” sob um regime de exceção para tentar escapar enquanto tenta se conectar com o seu passado, há uma tentativa de juntar tantos elementos que eventualmente algum acaba soando deslocado (como a participação do ator alemão Udo Kier). O conjunto, porém, é bem acima da média da competição morna de Cannes esse ano, com uma ambientação de época impecável no resgate da textura visual e musical do período, além de um elenco primoroso, do protagonista Wagner Moura a uma constelação de coadjuvantes, em que brilha a atriz Tânia Maria, a senhorinha que dá refúgio aos perseguidos, que havia feito uma participação em “Bacurau” e aqui rouba a cena em inúmeros momentos.
SIRAT, de Oliver Laxe
O FESTIVAL E OS DESAFIOS DA CRÍTICA
Por trás de todo o glamour que se imagina em relação a um festival como o de Cannes há um trabalho desafiador para o crítico de cinema. Assistir a 3 ou 4 filmes por dia e ter que escrever sobre eles nos tira qualquer possibilidade de uma maturação lenta para melhor absorver e captar suas qualidades e defeitos. Os filmes medíocres e/ou os que nos causam indiferença, seja por falta de ousadia ou excesso de pretensão, são muito mais fáceis de colocar no papel.
Mas há aqueles sobre os quais ficamos nos debatendo num dilema interno, sem conseguirmos chegar a uma conclusão: um filme pode mexer tanto conosco a ponto de não sabermos se o detestamos ou amamos? De onde surge a resposta? No caso da produção espanhola “Sirat”, de Oliver Laxe, um caminho poderia ser tentar em entender quais as intenções do diretor-roteirista com um filme que parece uma mistura de “Mad Max”, “O Salário do Medo”, “O Céu Que Nos Protege” e “Round 6”.
Por mais que, para a análise crítica baste o que está na tela, sem a necessidade de se conhecer detalhes dos bastidores da produção, nesse caso excepcional, dependendo de como ele justificasse suas escolhas, elas poderiam se revelar estapafúrdias ou soluções geniais. Mas Laxe explicou muito pouco na coletiva de imprensa. Disse preferir que o filme fale por si.
Ele está certo. Mas o impasse persiste. Afinal, se trata do roteiro mais bizarro e estranho com o que me deparei nos últimos anos. Até a primeira metade do filme, é a história de um espanhol de meia idade que vai até o Marrocos para procurar, na companhia do filho adolescente, a filha mais velha que desapareceu há meses. Ele suspeita que ela esteja participando de raves de música eletrônica no deserto, e isso é tudo que se sabe dela, além do olhar triste em uma fotografia.
Pai e filho passam então a peregrinar pelo deserto marroquino seguindo um grupo de espanhóis e franceses nômades que carregam grandes caixas de som em seus caminhões, a caminho da próxima festa. Até aí nada de novo: os percalços enfrentados (carro atolado, pneu furado, falta de gasolina) funcionam como jornada de autoconhecimento e diminuem a distância cultural e pessoal entre o pai careta e os outsiders.
Até que um acidente trágico, de certa forma plausível, faz com que a história dê uma guinada radical, em que mortes passam a se acumular de maneira absurda, algumas vezes a ponto de provocar gargalhadas involuntárias na plateia. É quando somos levados a questionar onde estaria a conexão entre essa sucessão de acontecimentos e a filosofia da cultura rave. Tudo isso poderia ter acontecido tendo como pano de fundo um festival de rock ou de samba?
Em um determinado momento, os personagens enfatizam que “a música eletrônica não se escuta, se sente”. OK, mas se a mensagem final sugere que o custo a pagar por essa sensação no fim das contas seja tão alto, o caminho mais seguro então seria se tornar um fã de música erudita? Para a crítica, talvez seja importante encontrar metáforas que justifiquem essa abordagem delirante – o título do filme, “Sirat”, de acordo com o Islam, se refere à ponte “fina como um cabelo e cortante como a mais afiada das espadas” que divide o inferno do paraíso e deve ser atravessada pelos mortos no Dia da Ressurrreição (Yawm al-Qiyamah).
Eu me mantenho no impasse inicial, mas que me rendeu inspiração para mais de 600 palavras e 3.500 caracteres de texto em plena correria de festival. Por isso, como crítico e espectador prefiro mil vezes assistir a um “Sirat” do que a produções cheias de boas intenções, mas que jamais se oferecem ao risco.
TWO PROSECUTORS, de Sergei Loznitsa
“Two Prosecutors” (“Dva Prokurora”) foi o primeiro bom filme a pintar na Mostra Competitiva do Festival de Cannes de 2025. O diretor ucraniano Sergei Loznitsa é conhecido por um olhar bastante crítico a regimes totalitários como o soviético e à ofensiva russa sobre a Ucrânia, construindo uma sólida carreira como documentarista (“Maidan”, “State Funeral”) e diretor de ficção (os brilhantes dramas pesadíssimos “Minha Felicidade”, de 2010, e “Na Neblina”, de 2012, concorreram à Palma de Ouro, com o segundo vencendo o prêmio da crítica internacional – FIPRESCI). Em 2018, ele voltou a Cannes para ganhar o prêmio de direção na Mostra Um Certo Olhar com “Donbass”.
Seu novo filme ficcional combina parte da austeridade sufocante dos dois primeiros com o olhar satírico de “Donbass”, mas mais comedido. A história se passa em 1937, durante o auge da chamada era do “Grande Terror” do regime stalinista na União Soviética, e acompanha Kornev, um jovem procurador recém- empossado, disposto a investigar uma denúncia de tortura e maus tratos cometidos pela NKVD (a polícia secreta de Stalin) contra um prisioneiro político.
Começa então uma espécie de via crúcis kafkiana sob a sombra de uma constante sensação de tensão e ameaça. Após uma longa negociação para ter acesso ao prisioneiro, o jovem idealista Kornev se identifica e se sensibiliza com a situação do velho bolchevique, que o alerta sobre a suposta presença de contra- revolucionários dentro da NKVD. Ele faz uma longa viagem até Moscou para levar a denúncia até o poderoso procurador geral, e o que acontece a partir de então é reflexo do alto custo que a busca pela verdade cobra nas entranhas do regime.
A atuação de Alexander Kuznetsov como Kornev é econômica em gestos e palavras, assim como o diretor opta por limitar as duas horas de filme a um prólogo (o ritual de destruição das cartas dos prisioneiros) e basicamente cinco longas sequências: a negociação na penitenciária, o encontro com o prisioneiro, a viagem de trem a Moscou, o encontro com o procurador geral e a viagem de volta, até chegarmos ao desfecho (surpreendente “pero no mucho”). Tal decisão estética é um grande acerto, ao privilegiar o aspecto observacional tanto por parte de Kornev quanto pelo espectador, reforçando a ideia de um universo claustrofóbico ao mesmo tempo em que permite que se perceba a importância dos detalhes por detrás da aparente normalidade.