É noite, um trem avança ligeiro sobre trilhos suspensos, em meio às luzes da cidade, e isso basta para termos certeza de que se trata de um filme de Wong Kar-Wai. Até o seu final, não só o trem noturno em movimento como quase todas as marcas registradas do diretor vão aparecer na tela.
Há poucas pistas de que estamos em Manhattan. As desilusões amorosas que acometem Elizabeth (Norah Jones) e Jeremy (Jude Law) refletem uma melancolia que desafia as convenções de tempo e espaço. Eles estão enclausurados em um café onde não há clientes nem funcionários. O resquício de vida está em um pote em cima do balcão, repleto de chaves de residências que almas sofridas recém-separadas deixaram ao passarem por ali.
Não saberemos que histórias foram essas, mas isso tampouco importa. Em matéria de amor, o cinema de Wong Kar-Wai é exagerado como uma letra de Cazuza - até nas coisas mais banais é tudo ou nunca mais. A lembrança de um resquício de torta de blueberry no canto da boca de Elizabeth é suficiente para que Jeremy tente localizá-la a qualquer custo, nem que seja ligando para os mais de 90 bares de Memphis. Soaria um tanto estranho e implausível se Wong Kar-Wai já não tivesse nos ensinado, em Amores Expressos, que a esperança de um reencontro amoroso pode se materializar até mesmo no ritual de se comer 30 latas de abacaxi em calda com a mesma data de validade.
A memória costuma assombrar os personagens de Wong Kar-Wai, incapazes que são de aceitarem que o passado seja algo que se vê, mas que não se pode tocar nem modificar. Por isso eles podem ir até um templo no Camboja só para confiar um segredo à guarda da eternidade (Amor à flor da pele) ou viajar para Ushuaia, a cidade no fim do mundo sul-americano, onde “as pessoas com o coração partido deixam a tristeza pra trás” (Felizes Juntos).
E assim Elizabeth deixa Nova York, Jeremy e a torta de blueberry para viajar sem rumo pelos Estados Unidos. Sua maneira de cicatrizar a ferida não é a que se esperaria de um filme americano convencional, onde a personagem ofereceria ao destino todas as chances para que um novo amor surgisse à sua frente. Elizabeth prefere observar a dor alheia, primeiro trabalhando como bartender em Memphis, onde testemunha a desintegração moral de um policial (David Strathairn) que se recusa a aceitar que sua mulher (Rachel Weisz) o deixou. Em seguida, se empregando como garçonete em um cassino de Nevada, seu destino se cruza com o de uma jovem apostadora (Natalie Portman de peruca loura, parecidíssima com a Sharon Stone de Cassino), que se revela uma pessoa extremamente solitária.
A narrativa mais acessível, o elenco de estrelas, a língua inglesa e o cenário americano podem sugerir que Wong Kar-Wai tenha se tornado mais um entre tantos diretores asiáticos, europeus e sul-americanos cooptados por Hollywood após conquistarem prestígio no cinema mundial, e que Um beijo roubado seja seu primeiro filme nessa nova fase. Não é. Trata-se de uma co-produção independente entre Hong Kong, China e França, que tem o próprio diretor como um dos produtores.
A escolha dos Estados Unidos como locação, e de uma cantora popular como Norah Jones para viver a protagonista, sugerem um olhar fetichista do diretor sobre certos símbolos ianques que por vezes remetem ao cinema de Wim Wenders, sem que, no entanto, ele demonstre a mesma familiaridade do diretor alemão com a cultura americana. Não é de se estranhar, portanto, que Wong Kar-Wai tenha recrutado Lawrence Block, um consagrado escritor americano de livros de mistério, para ser co-autor do roteiro de Um beijo roubado. Mesmo assim, a parceria não deu certo.
O que fez de Wong Kar-Wai o autor mais cultuado do cinema de Hong Kong nas últimas décadas foi sua capacidade de retrabalhar o tempo, dentro da narrativa, criando uma atmosfera singular e envolvente. Suas escolhas, seja na hora de posicionar a câmera (com o auxílio do ótimo diretor de fotografia Darius Khondji), de escolher e utilizar a trilha sonora (que inclui a interpretação vigorosa de Otis Redding para Try a little tenderness) ou de conduzir os atores (a ponto de conseguir disfarçar a falta de talento dramático da estreante Norah Jones), se mostram mais uma vez acertadas. Mas, lamentavelmente, em Um beijo roubado boa parte dos diálogos e situações são toscos, óbvios e cheios de lugares-comuns. Isto compromete o resultado como um todo e acaba deixando o filme num meio termo entre a mediocridade hollywoodiana e os grandes momentos da bela obra de Wong Kar-Wai.
#UM BEIJO ROUBADO (MY BLUEBERRY NIGHTS)
França/Hong Kong, 2007
Direção: WONG KAR WAI
Roteiro: WONG KAR WAI e LAWRENCE BLOCK.
Fotografia: DARIUS KHONDJI
Edição: WILLIAM CHANG
Direção de Arte: JUDY RHEE
Música: RY CORDER
Elenco: NORAH JONES, JUDE LAW, DAVID STRATHAIRN, RACHEL WEISZ, NATALIE PORTMAN.
Duração: 97 minutos
Site oficial: http://www.myblueberrynightsmovie.co.uk/