O diretor Laurent Cantet nasceu na França em 1961. Filho de pais professores da zona rural francesa, ele estuda cinema e se forma na prestigiosa IDHEC, atualmente chamada Le Fémis. O seu primeiro contato com o ofício cinematográfico é através da direção de fotografia de dois filmes do realizador Gilles Marchand: L´Étendu (1987) e Joyeux Noel (1993). Após a experiência, ele decide dirigir os próprios curtas e a partir deles consegue reconhecimento, prêmios e forma parcerias para o futuro.
O seu filme de estreia, Les Sanguinaires, faz parte do projeto “2000 visto por...” que reuniu cineastas de diferentes países, entre eles Walter Salles e Daniela Thomas (O Primeiro Dia) e Hal Hartley (O Livro da Vida), para promoverem uma reflexão sobre a passagem do milênio. A boa recepção faz que amadureça o seu segundo trabalho, Ressources Humaines, que apresenta as linhas autorais de sua carreira: um cinema de cunho político, com um olhar para personagens idealistas, que transforma o microcosmo de uma fábrica e um lar em um debate intenso sobre a França moderna. A experiência se radicaliza em A Agenda, no qual um homem esconde de sua família a sua condição atual de desemprego e tenta manter as aparências. O tema do emprego e da crise econômica torna-se universal em uma história minimalista, e que Cantet dirige com precisão ao se escorar em silêncio, tempos-mortos e poucos diálogos. Essa característica faz com que o seu cinema tenha grande diferença estética em relação ao panfletarismo de Ken Loach, dentre outros cineastas de perfil semelhante.
Porém, após alguns anos de hiato, Laurent investe no longa Em Direção ao Sul, que provoca polêmica por mostrar francesas ricas em passeio na África atrás de sexo e emoção. A recepção do filme é irregular e faz com que não se perceba as suas qualidades de encenação: a narração em off das mulheres que mostra pontos de vista distintos; o apreço na condução do elenco, tanto de profissionais quanto de não-atores; e a forma como contrapõe o paraíso idílico das senhoras com o inferno realista de uma ex-colônia francesa, que se esfacela pelo subdesenvolvimento.
O ponto ápice de sua ainda curta carreira chega mesmo com a consagração em Cannes ao receber a Palma de Ouro de melhor filme. O dado importante da premiação é que permite que seu cinema seja mais conhecido em diferentes países e abre caminho para a possibilidade da discussão, que é o seu principal objetivo como diretor de cinema.
Nesta entrevista exclusiva, o realizador Laurent Cantet reflete sobre a sua obra e aponta as referências para a realização de Entre os Muros da Escola.
Desde Recursos Humanos, os seus personagens principais atravessam por um momento-chave em suas vidas. No caso específico de Recursos Humanos, A Agenda e Entre os Muros da Escola, os personagens sentem o peso por suas escolhas e rumam para a mudança. Mas há também um sentimento de fracasso pessoal tanto com relação a família quanto ao trabalho. Por que a atração por esses temas?
Laurent Cantet: Todos os meus personagens principais são idealistas: eles acham que podem mudar o mundo. Mas o sistema é duro com cada um deles. Eles não são fortes o suficiente para suplantar o sistema e têm que aceitar, ainda que continuem questionando. O que me interessa particularmente é mostrar personagens que finalmente aceitam a falha. Na vida real você não é um herói; é um ser humano que pode falhar. Os meus personagens não são apenas uma linha; eles são contraditórios e, ao mesmo tempo, mais lógicos que as pessoas reais. O que tento é dar complexidade a cada um deles como um ser humano. Na vida nós não vamos de um ponto ao outro, já nos filmes fazemos a trama parecer a mais clara possível. Porém, sem dúvida, a complexidade da vida real é maior do que a lógica que você constrói no cinema.
Há um grupo de cineastas radicados na França, como Rabah Ameur-Zaïmeche [N.R.: diretor com três filmes no currículo e nenhum ainda lançado no Brasil, somente com passagens em festivais de cinema] e Abdel Kechiche [N.R.: o seu último filme, O Segredo do Grão, conquistou o prêmio especial do júri no Festival de Veneza 2007 e foi lançado pela Imovision no Brasil], cujo trabalho promove uma reflexão a respeito do subúrbio e da classe operária em uma análise sobre o preconceito, a falta de oportunidade e a condição de marginal no próprio país. O quanto o seu cinema se insere nesse espaço?
LC: Eu fiz o filme exatamente por essa razão: os jovens retratados não são desejados pela comunidade em que vivem. Num determinado momento do filme a personagem Esmeralda diz que não tem orgulho de ser francesa. Ela não tem orgulho do país onde nasceu porque a França não tem orgulho dela. Os estudantes de Entre os Muros da Escola não se sentem integrados ou parte da sociedade. Através deles, nós conhecemos as diversidades e diferentes culturas presentes na França. Eles enfrentam experiências novas e, com certeza, amadurecem de uma forma diferente de meus filhos, por exemplo, que estudam em um colégio majoritariamente formado por brancos e de classe média alta. Se eu comparar os alunos do filme com os da minha classe nos anos 70 percebo que eles têm a mente muito mais aberta. Na minha turma não havia confrontação. Ao olhar esses personagens, o espectador promove uma reflexão sobre o seu universo e o do outro, que está à sua margem. O surpreendente mesmo é que o filme é universal, pois todos desejam ser parte de uma comunidade e queridos por ela. Todos os países pelos os quais já levei o longa me fizeram perguntas semelhantes. E chegam à conclusão de que o papel da escola está em integrar as pessoas, formar cidadãos. Mais filmes parecem lidar com essas questões agora. Tivemos muitos debates com professores que não gostaram de Entre os Muros da Escola porque acha que demos uma imagem ruim para a profissão. Só que outros afirmaram exatamente o contrário dizendo que nos aproximamos da realidade. Na verdade, o filme busca o retrato de seres humanos, com seus erros e acertos. Afinal, a escola é só um lugar de conhecimento ou um meio de pensar sobre si mesmo e seu papel na sociedade?
Como você chegou até o projeto “2000 Visto Por...” e realizou seu primeiro trabalho Les Sanguinares? O quanto a experiência com seus primeiros curtas e o longa serviu para os trabalhos posteriores?
LC: Eu fiz dois curtas nos anos 90 e os produtores cinematográficos, Caroline Benjo e Simon Arnal, gostaram dos trabalhos e me propuseram um projeto para o canal ARTE. Discutimos sobre a realização e eles aceitaram tudo que propus. Rodamos o filme com baixo orçamento e em poucos dias. Mas a experiência foi marcante e intensa: fiz muitos amigos e formei uma equipe em que confio plenamente. No começo de minha carreira eu estava buscando um método. Já no meu primeiro curta, Tous à La Manif, experimentei trabalhar com não-atores. E também percebi que não gosto de seguir o que está exatamente escrito no roteiro. Em meus longas, eu sempre me pautei em ouvir o que os atores têm a dizer, mas somente em Entre os Muros da Escola aceitei a improvisação em cena. Eu queria e obtive um senso maior de liberdade em que me permito ser surpreendido atrás das câmeras. Não sei ainda quais serão meus próximos passos, mas já defini que gostaria de manter esse método.
O documentário Ser e Ter [N.R: lançado em circuito nacional e atualmente disponível em DVD], de Nicholas Phillibert, tem muitas semelhanças com Entre os Muros da Escola na questão de observar os personagens em sala de aula e de como filmar aquele espaço exíguo. Quais foram as principais referências para o trabalho?
LC: O filme Ser e Ter mostra um tipo de escola que não existe mais; uma França ruralista bem distante da atual. Fiz esse filme também como uma espécie de resposta ao documentário de Phillibert: o universo escolar não é só pacífico; quis mostrar a diversidade e as diferenças que o diretor tenta esconder. O professor é o oposto do retratado no meu filme: um ser que sabe tudo e tem o poder sobre as crianças. Na feitura de Entre os Muros da Escola usei muito mais contrapontos do que propriamente referências, como o caso de Ser e Ter e de Sociedade dos Poetas Mortos [N.R.: filme de 1989, dirigido por Peter Weir e estrelado por Robin Williams, que se tornou cult para milhões de espectadores]. Entre os Muros da Escola mostra o professor sem ser um modelo inspirador e bem mais próximo da realidade. Quando você é professor negocia e luta pelo seu trabalho. E não tem uma solução mágica para tudo. Uma influência mesmo foi o filme Zero de Conduta, de Jean Vigo, que apesar de destoar do tema do meu longa, eu aprecio bastante a liberdade da realização e a energia das crianças na tela. Por intermédio dessa força é possível cativar o espectador.
Filmografia:
1994 – Tous à La Manif (curta)
1995 – Jeux de Plage (curta)
1997 – Les Sanguinaires (longa)
1999 – Ressources Humaines (longa)
2001 – L´Emploi Du Temps (longa, que foi lançado no Brasil em cinema e DVD com o título de "A Agenda")
2005 – Vers Le Sud (longa, que foi lançado no Brasil em cinema e DVD com o título de "Em Direção ao Sul")
2008 – Entre Les Murs (longa, que está sendo lançado agora nos cinemas do país com o título de "Entre os Muros da Escola")