O filósofo Michel Foucault em seu seminal ensaio denominado Vigiar e Punir, que está disponível nas livrarias nacionais através da Editora Vozes, afirma que, através do formato de vigilância constante e da punição, é possível moldar as pessoas para se tornarem bons cidadãos e para que não infrinjam às normas estabelecidas no poder. Mas a situação prisional foi se tornando cada vez pior e a sociedade atual como um todo ruma para o caos. Os conceitos se imiscuem e formam novas ideias a serem debatidas. A utopia de séculos atrás ainda permanece como base no discurso de teóricos e magistrados: a educação é a única forma que se tem para se formar um indivíduo e inseri-lo na sociedade. A partir dessa premissa, o cineasta francês Laurent Cantet foi movido a realizar Entre os Muros da Escola em que registra o cotidiano de uma turma em uma história que funde documentário e ficção.
A narrativa de Entre os Muros da Escola estabelece a sua relação espaço-temporal de maneira definitiva, e toda a estrutura fílmica parte dessa escolha: o tempo para Cantet é sempre o hoje; e o lugar é a escola em uma turma de adolescentes do subúrbio francês. Não existe o antes e depois das aulas, todas as cenas do filme são ambientes no espaço escolar. Dessa forma, o diretor constrói o seu microcosmo, como em longas anteriores, em que quanto mais falar do particular daquela comunidade mais vai refletir o universal.
A França idílica retratada em comédias comerciais medonhas da atualidade cede lugar para a classe operária, o subúrbio e seus problemas. É um espaço marginal e que sofre com o preconceito bastante forte dos próprios franceses. O xenofobismo, que é uma marca de países europeus, se faz presente cada vez mais nos dias de hoje. E alguns cineastas resolveram focar suas lentes para essas histórias e promover um debate sobre a condição do imigrante e daquele que, mesmo tendo nascido no país, é considerado um estrangeiro. Os principais cronistas cinematográficos desse período na França são Rabah Ahmeur-Zaïmeche, cujo longa O Último Reduto foi exibido no último Festival do Rio, Abdel Kechiche (O Segredo do Grão) e Laurent Cantet.
Só há um plano em que o professor François é flagrado fora das dependências da escola. É exatamente o primeiro, em que está a beber um café e logo depois encontra um outro professor na rua para ingressar nas dependências do estabelecimento estudantil. Nesses primeiros instantes, existe uma definição da estética documental buscada por Cantet: a câmera permanece distanciada e atenta aos movimentos do rapaz, que permanece silencioso. Há um despojamento da mise-en-scène no sentido de descoberta proporcionado pela câmera e que vai se repetir durante toda a obra. É uma construção paulatina de vários fragmentos de narrativas que vão alavancar o todo. Parte-se do cinema de observação do dia-a-dia de uma turma, sem a utilização de trilha sonora, e de um professor para, aos poucos, fazer emergir uma trama de ficção, com personagens repletos de nuances, e que se tornam cada vez mais próximos do espectador.
A luz é cinzenta, entretanto, sem aferir um valor psicologizante para o retrato escolar. O que interessa a Laurent é o embate: seja nas longas discussões em salas de aula ou na troca de olhares e no não-dito revelado em frente à câmera. É nos planos-detalhes que o diretor vai descrever cada personagem até formar um quadro completo em que as peças se encaixam e dialogam entre si. Ao observar um desenho fortuito, a maneira de se vestir e o modo agressivo de se portar na carteira se revela assim a personalidade do indivíduo. Antes do discurso vem a forma e essa construção é levada a cabo no princípio em uma descrição minuciosa do retorno do ano letivo logo após as férias de verão: os cortes são secos e capturam breves momentos, entre eles a reunião dos professores e a recepção aos alunos. A habilidade de Cantet, auxiliado pela câmera de Pierre Milon, está em decupar ao máximo o espaço da sala de aula em múltiplos ângulos de perspectiva em que pequenos planos se alinham a uma tomada média que foca os jovens.
Após esquadrinhar aquilo que espera da imagem, aí sim o realizador começa a abrir espaço para o discurso em uma clara manobra de convergência entre forma e conteúdo. Entre os Muros da Escola vai se estabelecer, então, como um confronto verbal entre o professor e seus conceitos e os dos alunos tendo como pano de fundo uma França esfacelada com a crise econômica e marcada pelo preconceito. Toda a metodologia de ensino de François - que além de ator principal escreveu o romance que deu origem ao filme – é rechaçada pelos alunos em uma dialética constante e intensa. Ele se volta para um ensino que promove o debate sobre a dificuldade de ser jovem no mundo de hoje e na tentativa de formar a sua própria consciência e diferenciá-lo dos demais, como no exercício de feitura dos autorretratos. Mas há entraves muito maiores para isso funcionar na prática: os alunos, em sua grande maioria, sofrem com diversos tipos de problemas e formaram uma visão de mundo negativa e sem esperança, como a menina que acredita piamente não ter aprendido nada em um ano inteiro de aulas ou a outra que não tem orgulho de ser francesa.
A montagem varia entre cortes secos nos momentos de espera, silêncio e preparação para pequenas elipses temporais entremeadas por rápida tela preta. O caráter de fluência de um bom documentário funciona em Entre os Muros da Escola à medida que transparece a naturalidade das discussões, que é fruto de uma longa preparação de elenco, em cenas que são longas, mas que nunca excedem o objetivo central de levantar questões e provocar. A dinâmica do filme reside nesse acordo tácito entre espectador-realizador para preencher as lacunas e refletir sobre o que viu.
François acredita no ensino como a única forma que aqueles jovens vão ter para enfrentar as agruras do mundo moderno. Por essa razão, tenta amenizar os atos rebeldes e busca o diálogo, mesmo que seja rejeitado e repelido com todas as forças. Enquanto isso, outros professores se queixam da maioria dos alunos e não contemporizam as suas atitudes. Há uma cena forte em que um deles jorra preconceito ao afirmar que não há solução para esses ignorantes e de classe baixa. A cena é toda construída em cima do que ele fala e no que, em contraponto, todos os outros se calam. Ao ser inevitável a expulsão de um garoto devido às suas ações intempestivas e abandono da classe, François estampa em sua face a derrota pessoal em relação ao que acredita ser seu trabalho, como se ele enxergasse que, por mais que tente, não vai conseguir mudar inteiramente o sistema de ensino, mas nem por isso deixará de questioná-lo. Dessa forma, Laurent Cantet revela a escola com o olhar de dentro para refletir de maneira contundente o que está lá fora.
# ENTRE OS MUROS DA ESCOLA (Entre Les Murs)
França, 2008
Direção:LAURENT CANTET
Roteiro:LAURENT CANTET, ROBIN CAMPILLO e FRANÇOIS BÉGAUDEAU
Fotografia:PIERRE MILON
Montagem:ROBIN CAMPILLO
Produção:CAROLINE BENJO e CAROLE SCOTTA
Elenco:FRANÇOIS BÉGAUDEAU, LAURA BAQUELA, NASSIM AMRABT, JULIETTE DEMAILLE, DALLA DOUCURE.
Duração:128 minutos
Site Oficial:http://www.sonyclassics.com/theclass/