Críticas


TONY MANERO

De: PABLO LARRAÍN
Com: ALFREDO CASTRO, AMPARO NOGUERA, HECTOR MORALES
10.04.2009
Por Marcelo Janot
NOS EMBALOS DA DITADURA

Muita gente guarda na memória as cenas de Tony Manero (John Travolta) evoluindo na pista multicolorida em Os Embalos de Sábado à Noite, mas poucos lembram que o concurso de dança tinha uma importância menor no filme de John Badham. O que mais interessava era traçar um perfil de Manero, um jovem inconformado com a vida ordinária que levava como vendedor em uma loja de tintas, e que enxergava na dança um elemento de status e um possível atalho para que o “american dream” se tornasse uma realidade para ele. Apesar do alto astral dos contagiantes números musicais, o filme mostrava que cruzar a longa ponte que separava a falta de perspectivas do Brooklin da prosperidade de Manhattan não era nada fácil, e a sensação final que Os Embalos de Sábado à Noite deixava era a de melancolia, e não a do glamour.



Da mesma forma, no filme chileno Tony Manero, segundo longa do jovem diretor Pablo Larraín, um concurso de imitadores de Travolta é apenas pretexto para um olhar sobre a atmosfera cultural, social e política que cerca o personagem. No caso, o sombrio Chile de 1978, durante a ditadura do general Pinochet. Se no filme de Badham o foco está todo em cima de Manero, o de Larraín encontra no cinquentão Raul o contraponto perfeito para que se estabeleça um paralelo entre os dois personagens.



O que leva Raul a desenvolver essa obsessão psicótica por seu ídolo Tony Manero? Aonde ele quer chegar com ela além, é óbvio, de ganhar o concurso de imitadores? Larraín e Alfredo Castro (protagonista e co-autor do roteiro) não entregam isso de bandeja. Como observamos os acontecimentos sob o ponto de vista do personagem, cabe a nós tentarmos decifrar o que se passa em sua cabeça. O que se percebe é que qualquer coisa que se assemelhe a um “american dream” está muito distante de sua realidade. Afinal, Raul é um sujeito pobre, ignorante, brutalizado, vivendo em uma sociedade economicamente e moralmente devastada pela ditadura, que tenta potencializar sua ligeira vocação para a dança se refugiando no mundo encantado de Tony Manero.



Observe como Raul assiste ao filme repetidas vezes, a ponto de decorar os diálogos, mas não parece conseguir enxergar o lado melancólico da realidade de Tony Manero, apenas o glamour. E aí podemos enxergar uma espécie de alegoria sobre o poder de alienação do cinema hollywoodiano e seu efeito hipnótico, especialmente sobre os espectadores com pouca massa crítica. O processo de alienação de Raul resulta em uma série de barbaridades cometidas por ele, que fogem de qualquer código de conduta moral ou social. Mas são plenamente justificadas naquele Chile de Pinochet.



O trabalho do diretor é brilhante na maneira como observa o personagem. Larraín consegue captar toda a atmosfera de tensão constante nas cenas externas, mostrando uma Santiago cinzenta que mais parece uma terra de ninguém, onde a sirene da polícia soa de maneira angustiante na busca do inimigo político que pode estar em qualquer lugar. Larraín acerta também ao penetrar na intimidade de Raul, lançando um olhar que jamais soa voyeurístico, fetichista ou piedoso. Muito do que ele mostra pode chocar, como a escatologia de Saló, de Pasolini, também chocava, mas tudo o que se vê é coerente com aquela realidade e adequado à proposta.



A proeza maior, no entanto, é a do ator Alfredo Castro. Numa atuação antológica, digna de registro entre as grandes performances dos últimos tempos, ele consegue humanizar um personagem como Raul, capaz de embrulhar o mais sensível dos estômagos, a ponto de fazer o espectador até mesmo rir e se afeiçoar a ele. Enfim, Tony Manero, grande vencedor dos Festivais de Havana e de Turim, é mais do que uma grata surpresa: é um dos melhores filmes latino-americanos recentes, uma aula de como se fazer bom cinema com pouquíssimos recursos.

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